Quando eu era pequeno, o ato de descascar laranjas me impressionava muito. Eu imaginava que jamais seria capaz de manusear faca e fruta com a mesma habilidade com que via minha mãe fazê-lo.
Depois, a habilidade que me impressionava mais era a das professoras de Português. Eu imaginava que nunca seria alguém que saberia tanto quanto elas, capazes de desfiar substantivos, adjetivos, pretéritos perfeitos, regras, exceções e complementos.
Mais tarde ainda, veio a professora de Literatura, conhecedora de todas as histórias, seus detalhes, implicações e significados. Meu olhar era sempre fascinado, minha escuta era completa, incluía suspiros e bufadas.
Agora, vieram novos professores, novos conteúdos, novas laranjas que eu só olho, sedento, serem descascadas. Mais do que a fruta, o descascar me impressiona. Seja da gramática, dos romances ou das aulas.
Com o tempo, aprendi a manejar facas e gramáticas, romances e significâncias.
Mesmo assim, eu ainda me percebo olhando para os lados, me acreditando incapaz de chegar aos horizontes novos. Como se escrever maestralmente (o que é o conto “O amor de uma boa mulher” de Munro? O que é o romance “O filho de mil homens” de Hugo Mãe?) exigisse toda uma técnica nova e insuspeita, um segredo que só aos iniciados se apresenta.
Não exige. A experiência já deveria ter me mostrado que não há iniciados mágicos, há prática, aperfeiçoamento e dom – afinal, nem todos descascam a laranja sem romper a casca. De qualquer modo, eu deveria saber que posso chegar lá também, posso passar por bifurcações e preenchimentos, posso seduzir, enfeitiçar, conduzir e fazer errar. Basta que eu aprenda como, por conta, por soma e por subtração. Desde que eu me fascine por mim e perca o medo dessas novas facas e dessas laranjas tão vermelhas que parecem prenhes de veneno. Perder o medo. É esse o meu caminho. Estar com a fruta e a faca na mão, só assim poderei beber do meu próprio suprassumo.