Felicidade Clandestina (Clarice Lispector) é um livro com 25 contos e crônicas lançado pelas editoras Rocco e Nova Fronteira, com várias edições e capas. Neste post, especificamente, quero falar do texto que dá nome ao livro: Felicidade Clandestina. Se você ainda não o conhece, leia e depois volte, pois há spoiler nos próximos parágrafos.
Clarice Lispector me impressiona desde sempre. Cada vez que conheço mais de sua obra, sinto mais admiração pela escritora que tão bem usou a língua portuguesa para criar uma arte única, singular e especial. E ressalto, quando me refiro a conhecer Clarice não é ler frases no Facebook e afins que não revelam a escritora, é ler os seus livros, verdadeiramente. E a partir dessas leituras, afirmo que, para mim – no meu pequeno mundo literário – não há escritora brasileira que supere Clarice, ela está no topo.
No pequeno texto chamado Felicidade Clandestina, a personagem principal é a narradora, uma menina, que adora ler e conhece na escola uma outra menina que tem muitos livros, pois o pai é dono de uma livraria.
Mas o que poderia ser uma amizade singela, se transforma em crueldade, que brinca com sentimentos fortes, a paixão e o desejo.
A primeira frase
Na primeira frase de Felicidade Clandestina, Clarice define muito o que o texto promete revelar: “Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme; enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.”
Reparem que Clarice Lispector é objetiva. Neste conto não importa o cenário e sim as características da primeira personagem, uma menina gorda, ruiva e, praticamente, dona de uma livraria. E como também é sutilmente informado, a menina sempre tem o bolso cheio de balas, que é explicado nos próximos parágrafos: “Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho.” A imagem dessa garota é a personificação do egoísmo, como indica o bolso cheia de balas e também o que fica provado no decorrer do conto.
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A narradora, ainda comprometida com sua própria ingenuidade vai, diariamente, à casa da menina ruiva para conseguir o empréstimo de um livro. A menina ruiva, provando sua característica perversa diz, todos os dias, uma mentira nova a cerca do paradeiro do livro: emprestou para um; para outro; há minutos atrás o livro estava aqui, você que se atrasou. E cada vez que o livro não pode ser emprestado, alimenta a esperança de felicidade da menina boa e na mesma proporção que a menina má se enche de orgulho de sua própria perversidade. Até o dia que a mãe vê a atitude da filha e, por fim revela que o livro sempre esteve lá, e o entrega à menina apaixonada pelo livro.
É neste ponto, por este motivo, que surge a famosa frase de Clarice Lispector “Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”. Reparem no contexto da frase. O livro, para a menina boa é como a conquista de seu primeiro amor, seu primeiro amante, que só foi possível pela esperança de adquiri-lo. Um sentimento tão forte de conquista que a deixa sem coragem de ler o livro.
Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar… Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.
Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Vejam como Clarice consegue misturar assuntos inusitados num mesmo conto. Neste, temos a perversão, a paixão, a maldade, o desejo… tudo junto e, se um ser comum (como nós) fosse escrever sobre esses assuntos, jamais sairia algo próximo ao que Clarice conseguiu fazer. Pois se penso em perversão, maldade, desejo e paixão, imagino uma história picante, “para adultos”. Mas então vem Clarice e PLAFT! Dá um tapa na cara e diz: “é assim que se escreve!”