A Hora da Estrela (Clarice Lispector): um soco

Dentro do leitor há um grito desde o primeiro momento da leitura até o último. Quando a última página termina, fica um eco, eterno, para sempre, cheio de perguntas sobre quem é Macabéa, sobre o quanto, cada um de nós é Macabéa, ao mesmo tempo que essa constatação causa espanto e repulsa, porque não podemos ser Macabéa, porque dentro de sua simplicidade, mora a perfeição e nós estamos muito longe disso. Assim, A hora da Estrela se torna eterno dentro de cada leitor, pois a verdade é que mergulhamos num espaço muito particular de consciência que, de um jeito que não se explica, mas percebe-se como algo muito concreto, não há palavra, não há linguagem capaz de expressá-la.

A Hora da Estrela

O romance A Hora da Estrela é o último livro que Clarice Lispector escreveu, em 1977, o mesmo ano da morte da autora. Na última entrevista, para a TV Cultura, Clarice comentou sobre Macabéa: “a história é de uma moça, tão pobre que só comia cachorro quente. Mas a estória não é isso, é sobre uma inocência pisada, de uma miséria anônima.”

A miséria anônima

É por meio desse anonimato que mergulhamos na personagem principal, mas também na sua pequena vida, não apenas no sentido literal da palavra, mas também é como se Macabéa fosse uma formiga, sendo esmagada o tempo todo pela melhor amiga, pelo namorado, pela cartomante e, principalmente, pela própria vida que leva, de datilógrafa, de alguém que com todos os dias a mesma coisa, que gosta de Coca-Cola e também de ouvir rádio.

“Quando acordava não sabia mais quem era. Só depois é que pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. Só então vestia-se de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser.” (p. 36)

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Para o leitor chegar, de fato, a conhecer a existência de Macabéa como personagem, primeiramente, ele será apresentado a Rodrigo S. M., que é o narrador da história e também, podemos dizer, a própria Clarice. Ele, angustiado, com medo, delicado com as palavras, mas pulsando um desejo de dividir a sua descoberta (a Macabéa), desnuda-se para o leitor, revela suas fraquezas e suas falhas como uma pessoa que tenta contar uma história. Se de um lado, como a própria Clarice afirmou, A Hora da Estrela é um livro sobre uma miséria anônima, o próprio Rodrigo S. M. também pode se encaixar nessa descrição, o que nos sugere os sentimentos da própria autora:

“Escrevo por não ter nada a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu morreria simbolicamente todos os dias. Mas preparado estou para sair discretamente pela saída da porta dos fundos. Experimentei quase tudo, inclusive a paixão e o seu desespero. E agora só quereria ter o que eu tivesse sido e não fui.” (p. 21)

Não é fácil escrever

“(Vai ser difícil escrever esta história. Apesar de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre espantos meus. Os fatos são sonoros mas entre os fatos há um sussurro. É o sussurro o que me impressiona.) (p. 24)

O livro vai sendo concebido a partir da coragem do narrador em contar a história da Macabéa, então, são doses homeopáticas desde a descoberta da existência da personagem, o seu nome, de onde veio e o que irá acontecer em sua vida.

Os fatos da história, a narrativa mais acelerada e objetiva acontece quando o próprio narrador se cansa de suas delongas e, com muita dor e angustia, revela a sua dificuldade em narrar fatos.

De novo, vemos a própria autora, que se destaca como um dos melhores nomes da literatura, por conseguir contar histórias tão profundas e verdadeiras sem usar como base os fatos e a ação, porque o principal na obra clariceana é o mergulho profundo na existência humana.

“Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados.
Ah que medo de começar e ainda nem sequer sei o nome da moça. Sem falar que a história me desespera por simples demais. O que me proponho contar parece fácil e à mão de todos. Mas a sua elaboração é muito difícil. Pois tenho que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo. Com mãos de dedos duros enlameados apalpar o invisível da própria lama.” (p. 19)

O que é a hora da estrela?

Talvez, o leitor que lê A hora da Estrela pela primeira vez não descubra a reposta, afinal, o título, de uma beleza única, exprime felicidade. Ser estrela nunca é considerado algo ruim, porém, tudo depende muito do jeito como é encarado o ser estrela, ainda mais no ponto de vista da obra de Clarice Lispector porque:

“Assim como ninguém lhe ensinaria um dia a morrer: na certa morreria um dia com ose antes tivesse estudado de cor a representação do papel de estrela. Pois a hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema, é o instante de glória de cada um e é quando como no canto coral se ouvem agudos sibilantes.” (p. 29)

A hora da estrela é a hora da morte.

Macabéa, Olímpio, Glória e a cartomante

O leitor irá conhecer alguns momentos da infância de Macabéa, no nordeste do Brasil, mas, sozinha, após a morte de sua tia, a personagem vai para o Rio de Janeiro, aluga um quarto e, com orgulho, torna-se datilógrafa.

Olímpio namora Macabéa, que o surpreende todos os dias a elevar as suas conversas a um nível filosófico e ao mesmo tempo engraçado (mas somente o leitor percebe isso). Ele, que se acha muito inteligente, fica sem palavras quando Macabéa está quieta e também quando Macabéa lhe faz alguma pergunta:

Ele: – Olhe, eu vou embora porque você é impossível!
Ela: – É que só sei ser impossível, não se mais nada. Que é que eu faço para conseguir ser possível? (p. 48)

Para ele, Macabéa tem “cara de quem comeu e não gostou”, é muito magricela, muito burra e tem “cor de suja”.

Glória, a amiga de Macabéa, também é surpreendida pelas perguntas e respostas inusitadas. Como amiga, ela tenta ajudar Macabéa, mas também não se preocupada verdadeiramente com a sua felicidade. As duas mulheres são opostas tanto fisicamente, quanto na sua essência. “… apesar de feia, Glória era bem alimentada” (p. 59), “Glória era um estardalhaço de existir” (p. 61).

– Me desculpe eu perguntar: ser feia dói?
– Nunca pensei nisso, acho que dói um pouquinho. Mas eu lhe pergunto se você que é feia sente dor.
– Eu não sou feia!!!, gritou Glória. (p. 62)

A cartomante surge na vida de Macabéa por intermédio de Glória, que indica os serviços para a amiga. É essa mulher que coloca nas mãos de Macabéa a possibilidade real de uma vida feliz ao mesmo tempo que também ocorre a sentença final da vida da personagem. A figura da cartomante, como algo que engana, cumpre o seu papel, mas também causa uma pequena felicidade para a nossa protagonista, como podemos dizer o mesmo de Olímpio e Glória que, também deram um certo tipo de alegria para Macabéa, mesmo que por um curto espaço de tempo.

Um soco no estômago

Interessante e mágico e profundo. A Hora da Estrela é quase um livro de silêncios, então. É também um livro de perguntas. Macabéa, para sempre ficará na cabeça e no coração de um leitor apaixonado pelo simples fato de, em alguns segundos, conseguir tocar no grau mais elevado da compreensão da existência. É isso que Clarice Lispector dá para o leitor. É um presente, uma luz, uma estrela. A gente vive, revive, morre, renasce e Macabéa sempre continuará ali a desnudar nossas misérias, a jogar um manto delicado de felicidade, que voa com o vento. O vento também vem com a força do soco que a gente leva. Ler A Hora da Estrela é um soco.

“Devo dizer que essa moça não tem consciência de mim, se tivesse teria para quem rezar e seria a salvação. Mas eu tenho plena consciência dela: através dessa jovem dou o meu grito de horror à vida. À vida que tanto amo.” (p. 33)

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