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O sonho da razão produz monstros… ou seria seu sono? (Breves notas sobre as distopias contemporâneas)

O artigo apresenta uma pequena leitura do romance Nós, de Ievguêni Zamiátin, a partir de uma gravura de Goya (O sonho da razão produz monstros), de um conceito de totalitarismo que creio ser possível extrair da gravura, e, também, de uma leitura de O conto da Aia, de Margareth Atwood.

No posfácio à edição brasileira de 2017 do livro Nós, do russo Ievguêni Zamiátin (1884-1937), o professor Cássio de Oliveira dialoga com a frase que Francisco de Goya y Lucientes (1746-1828) escreveu em uma das gravuras da série intitulada Caprichos (1799), um conjunto de figuras inventadas e gravadas em água-forte que pretendiam mostrar, em meio a extravagâncias e desacertos tão comuns em toda a sociedade civil, ridículos autorizados pelo costume, pela ignorância ou pelo interesse, e que permitiam ao artífice exercitar suas fantasias.

Para o posfaciador de Nós, um romance distópico escrito na Rússia entre 1920 e 1921 e que influenciou Orwell e Huxley, os monstros saídos da pena de Zamiátin implicaram a edificação de um Estado Único responsável pela organização algébrica da felicidade de todos Nós. Mas são monstros que também denunciam a inviabilidade do controle total, a resiliência dos desejos individuais e humanos que talvez também povoem os sonhos da razão.

Leia também: O que é distopia?

O sonho da razão produz monstros
O sonho da razão produz monstros. Goya, 1779

Os caprichos de Goya

Não por acaso os Caprichos de Goya foram gravurados naquela encruzilhada que separou o mundo contemporâneo das reencenações de hierarquias e vivências que marcaram o Antigo Regime. Eram tempos iluministas, em que se ousava saber perscrutando regularidades nas vidas de povos distintos, mas também tempos de onde saíram os argumentos sobre a possibilidade de hierarquia entre povos mais dados ao progresso científico e outros que talvez precisassem de “algum empurrão” para produzir ciência, para ordenar racionalmente os elementos da natureza e os desejos da sociedade.

A gravura de Goya, “o sonho da razão produz monstros“, nos coloca diante de uma importante dimensão dos debates iluministas: o entendimento de que era possível “refazer” toda a sociedade, estabelecer um contrato social que a todos obrigasse na construção da felicidade fabulada.

Em nome desta felicidade, os monstros reificados em violência e guerras, eram preço menos importante a pagar. Explorando um pouco mais esta hipótese, deixo aqui uma sugestão do amigo Rafael Ruiz: “sueño”, palavra espanhola, pode ser também sono, sono e sonho em espanhol nem sempre se diferenciam. Se é assim, seria a razão adormecida, o seu silêncio, que produz os monstros, ou seriam as suas fabulações em sonhos de futuro?

Trata-se da expressão de uma dúvida cara aos iluminismos, e que o século XIX parece ter querido diluir à medida que se espalhavam as conquistas da ciência representadas pela medicina, pelo controle das águas dos rios, pelo incremento da produtividade industrial, pelas novas edificações e arruamentos que se beneficiavam de novas técnicas de construção, etc.

A possibilidade de controlar a natureza

Os anos de 1800 trariam os pragmatismos resultantes do enraizamento de um mundo que considerava possível controlar a natureza e organizar a sociedade a partir de dados empíricos oferecidos pelas pesquisas científicas, e aqui se destacaram as teorias de controle social.

Os contrapontos estavam por ali, rondando os medos causados pelo espetáculo da pobreza produzida na época: de Frankestein a Dr. Jekill e Drácula, passando pelos miseráveis (Victor Hugo) e pelos demônios (Dostoiévski), o cânone ocidental demonstrava alguma percepção de que as luzes também podiam escurecer o entendimento do mundo, ou revelar horrores não percebidos pelo enaltecimento das capacidades humanas. A dúvida, assim, que fora o fundamento dos iluminismos, mantinha-se por ali, rondando, mas parecia não ter lugar no mundo de certezas que a ciência positivista propunha.

A ausência do debate público

Para muitos autores, os projetos totalitários que marcaram o século XX ambicionaram refundar a humanidade, banindo suas partes irredentas, irracionais e atrasadas. Seriam manifestação da razão extremada ou da sua ausência no debate público, momento em que se exige de todos a servidão? Destaque-se aqui que as distopias contemporâneas, nomeadamente as do século XX, trouxeram um elemento novo: a projeção ou radicalização de uma dimensão que se apresenta ao autor do romance em seu tempo vivido e que ele pretende mostrar aos seus leitores. Desta forma, são romances que nos expõem monstros saídos do sono/sonho da razão, sem dúvida, mas o fazem considerando possibilidades que espreitam perigosamente a humanidade. 

O sonho da razão produz monstros
Nós, de Ievguêni Zamiátin. Editora Aleph. COMPRE NA AMAZON

O olho do furacão

Nós foi escrito no olho do furacão: em meio às experiências do autor que viveu a revolução russa, a guerra civil e a NEP. O título encaminha a trajetória do leitor frente ao personagem principal, D-503, que se movimenta entre as imposições e regramentos coletivos, definidos pelo Estado Único, e as manifestações incontroláveis de sua consciência e de suas sensações.

O autor viveu a época da vanguarda construtivista russa, cujas utopias articulavam movimentos sociais e artísticos, trabalhadores, poetas, escritores, músicos, fotógrafos e pintores que idealizaram manifestações artísticas para libertar a humanidade da opressão em que vivia.

A arte seria, assim, diluída no processo mesmo de construção da vida, seria marcada pela temporalidade vivida que era revolucionária e exigia comprometimento, mas não supunha silêncio ou servidão.

O sonho da razão porduz monstros: o principal alerta

Os vanguardistas foram engolidos pelo realismo socialista, e esse talvez o principal alerta de Nós: qual o equilíbrio possível entre os desejos e projetos de futuro e as possibilidades de construção da realidade, como alinhavar propostas e possibilidades, sonhos e ordenamentos racionais? Muito difícil, após ler Nós, considerar os avanços do totalitarismo na Rússia soviética apenas com a ascensão de Stálin, especialmente se lembrarmos os alertas de Rosa Luxemburgo ainda entre 1918 e 1919. Desenhos de totalitarismo se difundiriam pelo século XX, e se espalhariam também nas democracias. 

O Conto da Aia e as liberdades fundamentais

O Condo da Aia, de Margareth Atwood, talvez seja uma das melhores expressões desta possibilidade. O livro foi publicado em 1985, em meio aos retrocessos de ordem moral que a era Reagan produziu, e que serviram de cortina para exportar barbarismos contra outros povos em nome de uma liberdade que, mesmo assim, parecia escapar aos americanos.

O Conto oferece, a partir da dimensão moralista do período, uma distopia na qual as mulheres são submetidas a controles e comportamentos que negam direitos civis e políticos quando estes, em tese, seriam o fundamento da democracia americana. Mesmo se observarmos que a escrita do livro coincide com os anos finais da guerra fria, não se pode afirmar que se trate apenas de uma crítica relacionada a um possível avanço do mundo comunista sobre o mundo livre.

O romance dialoga com as dúvidas acerca das possibilidades de uma institucionalidade política capaz de conviver com as liberdades fundamentais: essas sempre trazem pluralidade, sentimentos e opiniões partilhados para ajustes de pactos, definições sobre os direitos que historicamente, desde os iluminismos, veem sendo afirmados como da natureza humana. Mas esses são elementos da vida democrática que prescindem da homogeneidade fabulada pelos totalitarismos.

O sonho da razão produz monstros: expressões políticas

Tudo isso, leitor, porque totalitarismos não são apenas possibilidades políticas colocadas pela experiência soviética, nazista ou fascista para manutenção da ordem comunista ou capitalista, são expressões políticas resultantes dos desajustes e sofrimentos humanos vividos quando apartamos espaços de experiência e expectativas de futuro (Koselleck), racionalizações extremadas que buscam controlar sensações, projetos e possibilidades não inteiramente apreensíveis quando se considera a razão como único elemento ordenador da realidade, e quando se esquece o mais relevante da libertação que a razão pode oferecer: a possibilidade de duvidar a partir do conhecimento acumulado e partilhado republicanamente.

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