Introdução
Neste ensaio irei analisar o conto “O Dedo”, de Lygia Fagundes Telles, apontando trechos que me chamaram a atenção juntamente com uma breve análise crítica e destacando alguns pontos interessantes que merecem ser discutidos.
Sobre a autora
Lygia de Azevedo Fagundes, mais conhecida como Lygia Fagundes da Silva Telles, nasceu em 19 de abril de 1923 (97 anos) em São Paulo, e foi nomeada “a dama da literatura brasileira”. Suas obras mais conhecidas são Ciranda de Pedra (1955), Antes do Baile Verde (1970) e As meninas (1973). Lygia ganhou quatro vezes o Prêmio Jabuti, quatro vezes o Prêmio da Associação Paulista dos Críticos de Arte, além do Prêmio Camões em 2005 e o Juca Pato em 2008. Assim como Clarice Lispector, da qual era amiga, Lygia aborda o universo feminino de forma atual, sem a visão masculina que rodeava as personagens mulheres em outros livros da época, rompendo com a ótica dependente da mulher para com o homem.
O conto “O Dedo” e sua relação com o sobrenatural
Escrito em 1981, o conto foi publicado originalmente no livro Mistérios, uma coletânea de contos fantásticos escrito pela autora. Ele é narrado por uma protagonista feminina e sem nome que está andando pela praia coletando pequenos objetos como “(…) uma pedra redonda e cinzenta, (…) um grosso pedaço de cipó, (…) um punhado de pequeninas estrelas-do-mar (…)”, entre outras coisas. Entretanto, durante sua caminhada em plena manhã de sol, ela acaba se deparando com algo inusitado, algo estranho, mais especificamente um dedo, um dedo humano. A partir desse momento, somos introduzidos a um monólogo interno entre a protagonista e seu outro eu:
Mas hoje minha face lúcida acordou antes da outra e está me vigiando com seu olho gelado. “Vamos – diz ela – nada de convulsões, sei que você é da família dos possessos, mas não escreva como uma possessa, fale em voz baixa, sem exageros, calmamente.“
TELLES, Lygia Fagundes. Mistérios: ficções. Rio de Janeiro, 1981
Calmamente?! Mas foi um dedo que achei! – respondo e minha vigilante arqueia as sobrancelhas sutis: “E daí? Nunca viu um dedo?” Tenho ganas de esmurra-la: Já vi, mas não nessas circunstâncias.
Podemos perceber por esse trecho o conflito interno que a protagonista do conto tem consigo mesma, denominando a sua parte sã e consciente de “face lúcida”, enquanto a outra face é sempre tão calculista que acaba aborrecendo a personagem, ficando “a uma certa distância, me observando e sorrindo”.
Com base nas ações tomadas pela narradora, optando por contar a história de forma fantástica e na relação dela com sua outra parte, é possível fazer um paralelo com o caso clássico de razão e impulsividade inserido no livro O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson, publicado em 1886, no qual temos o Doutor Henry Jekyll, um respeitável médico que, através de um experimento, consegue separar a sua parte boa da parte ruim, gerando assim o Senhor Hyde, um homem sem escrúpulos, com impulsos animalescos e violentos.
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Como dito anteriormente, o conto “O Dedo” foi publicado em uma coletânea chamada Mistérios. Nesse livro, podemos encontrar diversos contos que evocam o fantástico, o horror e o sobrenatural, se assemelhando bastante com o gênero fantástico escrito por Edgar Allan Poe, grande escritor do gênero e considerado por alguns como o “pai do terror clássico”, servindo de inspiração para escritores como H.P. Lovecraft, Robert W. Chambers e entre outros escritores tanto de sua época como da nossa, sendo um marco na literatura do horror. Dentre os escritores que se inspiraram em Poe, temos a própria Lygia Fagundes Telles, resgatando a literatura fantástica em seus livros, por meio da intertextualidade e alusões a narrativas fantásticas dos séculos XIX e XX, como foi abordado em um estudo feito por Paulo Sérgio Marques e Ana Luiza Camarani em “Lygia Fagundes Telles e Edgar Allan Poe: diálogos intertextuais”.
O conto “O Dedo”, que está sendo usado como base para tal tarefa, apresenta uma forma de horror semelhante à usada por escritores como Edgar Allan Poe, cujo horror não está apenas na situação em si, no fato da protagonista encontrar um dedo decepado na orla da praia, mas também na forma como é contado, principalmente na maneira como o dedo é descrito pela protagonista:
Inclinara-me para ver melhor o estranho objeto quando notei o pequeno feixe de fibras de algodão emergindo na areia banhada pela espuma. Quando recorri aos óculos é que vi: não era algodão, mas uma vértebra meio descarnada […]. Era um dedo, dedo anular, provavelmente, com um anel de pedra verde preso ainda à raiz intumescida. Como lhe faltasse a última falange, faltava o elemento que poderia me fazer recuar: a unha. Unha pontuda, pintada de vermelho, o esmalte descascando, acessório fiel ao principal até no processo de desintegração […].
Pela descrição feita, é possível, com um pouco de imaginação, ver o órgão coberto de areia e sujo devido ao ambiente, além de passar a sensação de podridão e o cheiro pútrido que exala de carne em decomposição. O trecho que destaquei é um bom exemplo para demonstrar como as palavras, quando usadas de forma que capacitem o leitor a imaginar o objeto, podem tornar a cena mais vívida e, por consequência, mais assustadora, se tratando de um dedo humano na praia com um anel ainda preso em sua carne.
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Lygia Fagundes Telles consegue, com graciosidade e muito talento, evocar vestígios da literatura fantástica dos séculos XIX e XX em seus textos que abordam o sobrenatural, provando que há espaço para mulheres tanto na literatura contemporânea quanto no cenário do terror, formado majoritariamente por homens, apesar de ser um gênero pouco explorado por autores de sua época.
Considerações finais
Com a publicação de Frankenstein, de Mary Shelley em 1818, o gênero de horror e fantasia ganhou um toque de experiência feminina, abrindo espaço para que outras mulheres pudessem explorar esse terreno pouco abordado pelas escritoras, e desde então diversos livros do gênero foram publicados por grandes autoras. Lygia Fagundes Telles, apesar de arriscar de forma razoável nesse território, concedeu a sua pátria brasileira um acervo sobrenatural considerável para sua época de publicação, fazendo, assim como Mary Shelley, que mais escritoras como ela tivessem espaço para se expressar da forma que quisessem, seja sobre o amor ou sobre a morte.
Referências
CAMARANI, Ana Luiza Silva; MARQUES, Paulo Sérgio. Lygia Fagundes Telles e Edgar Allan Poe: diálogos intertextuais. UNESP Araraquara. 2009.
Lygia Fagundes Telles – Wikipedia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Lygia_Fagundes_Telles#CITEREFLucena2008. Acesso em: 26 jan. 2021.
Mistérios (livro). Wikipedia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Mist%C3%A9rios_(livro)#cite_note-1. Acesso em: 26 jan. 2021.
O Dedo. Blog da Reformatório. Disponível em: https://blogdareformatorio.wordpress.com/2014/12/09/o-dedo/. Acesso em: 26 jan. 2021.
Strange Case of Dr Jekyll and Mr Hyde. Wikipedia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Strange_Case_of_Dr_Jekyll_and_Mr_Hyde. Acesso em: 26 jan. 2021.
TELLES, Lygia Fagundes. Mistérios: ficções. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.