“Fernando Pessoa criou uma quantidade inimaginável de heterônimos. Segundo ele, a sua pessoa, seu corpo físico, se tornou uma reunião de uma pequena humanidade dentro de si, na qual cada uma dessas pessoas seriam fragmentos da personalidade.”
“Os poetas não têm biografia. A sua obra é a sua biografia. Pessoa, que sempre duvidou da realidade deste mundo, aprovaria sem vacilar que fosse diretamente aos seus poemas, ignorando os incidentes e os acidentes da sua existência. Nada na sua vida é surpreendente – nada, exceto os seus poemas.”
Octavio Paz. Fernando Pessoa, o desconhecido de si mesmo
Uma breve introdução
Fernando Pessoa nasceu em 13 de junho de 1888. Foi um homem interessado em diversas áreas do conhecimento, indo de poeta à astrólogo, porém, durante sua vida, não obteve sucesso nem o reconhecimento que lhe era direito, publicando cerca de quatro obras durante sua vida, sendo três eram em inglês e uma em português. Entretanto, alguns anos após sua morte, seus trabalhos, escritos e heterônimos, foram finalmente reconhecidos e estudados, o que lhe garantiu a imortalidade na literatura universal.

A subversão da realidade e os heterônimos
Fernando Pessoa criou uma quantidade inimaginável de heterônimos. Segundo ele, a sua pessoa, seu corpo físico, se tornou uma reunião de uma pequena humanidade dentro de si, na qual cada uma dessas pessoas seriam fragmentos da personalidade dele, cada uma absorvendo um pouco do mundo e se utilizando dele para escrever suas poesias. A realidade para Pessoa era aquilo que ele vivia diariamente e suas diversas criações eram, de fato, sujeitos para ele, não menos reais do que seres de carne e osso.
De todas as centenas de heterônimos que Fernando Pessoa possui, neste breve trabalho darei destaque apenas a Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, mais especificamente por meio dos poemas “Às vezes medito” e “Todas as teorias, todos os poemas”, dos respectivos autores.
Ambos os poemas tratam da realidade, do existir, do ser, e é onde temos uma divergência nas opiniões dos poetas. Cada um deles vê a realidade de uma forma diferente: para Álvaro, o existir é um grande mistério, é pavoroso pensar que todas as coisas existem e que ele em si existe; já Caeiro tem a realidade como a única coisa verdadeira no mundo, pois é ela o concreto de tudo, e ele, de todos os heterônimos, era o único que nunca escreveu em prosa, pois dizia que só a poesia seria capaz de dar conta dessa realidade.
No poema de Álvaro, o eu-lírico medita sobre a existência, e o fato de todas as coisas serem como são é assustador, é algo incompreensível.
“Ah, o pavoroso mistério de existir a mais pequena coisa
Porque é o pavoroso mistério de haver qualquer coisa
Porque é o pavoroso mistério de haver…”
Álvaro de Campos. Às vezes medito.
Em Páginas Íntimas e de Auto Interpretação (1966), Fernando Pessoa diz que, para ele, tudo é hesitação e dúvida, mistério e horror, incoerência e mutação, o que fica claro no poema de Álvaro de Camps. Tudo que é desconhecido é assustador, vários outros poetas e escritores já disseram a mesma coisa, pois a realidade, em sua concretude, é por si só um grande mistério que talvez nunca poderemos entendê-la de fato. Por isso a astronomia (não astrologia), a ciência dos astros, causa tantas reflexões e angústias; o fato de estarmos sozinhos no universo em vista de sua extensão é assustador, já que nos transforma em míseros grãos de areia.
“Toda a constituição do meu espírito é de hesitação e dúvida. Para mim, nada é nem pode ser positivo; todas as coisas oscilam em torno de mim, e eu com elas, incerto para mim próprio. Tudo para mim é incoerência e mutação. Tudo é mistério, e tudo é prenhe de significado. Todas as coisas são desconhecidas, símbolos do Desconhecido. O resultado é horror, mistério, um medo por demais inteligente.
Fernando Pessoa. Páginas Íntimas e de Auto Interpretação. 1966.
Outra indagação que podemos fazer ao ler o poema de Álvaro de Campos é a singularidade do ser humano. Nós vivemos em um mundo com bilhões de pessoas e durante toda nossa vida não conhecemos nem um terço delas. Com círculos fechados de amigos e famílias, estamos fadados a morrer sem conhecer cada pessoa e sem ao menos lembrar do rosto delas.
Leia mais >> Apontamento (Fernando Pessoa)
Já no poema “Todas as teorias, todos os poemas”, existe o contraste com as indagações de Álvaro de Campos, na qual temos a realidade como a única coisa que nos interessa. Por mais que todas as teorias e todos os poemas durem mais do que uma flor, elas não possuem importância; em contrapartida, o que importa mesmo é o tamanho e a duração da flor, porque a dimensão é a realidade e ser real é a única coisa verdadeira no mundo, segundo Alberto Caeiro.
Por mais que a poesia, a literatura e a teoria sobrevivam por centenas e até milhares de anos, elas são apenas reflexo do pensamento abstrato de seu autor, são pensamentos colocados numa folha de papel e, mesmo assim, não são reais. O que é concreto são as coisas que existem ao nosso redor; isto é a realidade: são as casas, as montanhas, as pessoas e as florestas. Elas estão sendo e existindo, por isso não importa o quão grande seja o livro ou quão visionária seja a teoria, tudo não passa de abstrações.
“O tamanho, a duração não têm importância nenhuma…
São apenas tamanho e duração…
O que importa é a flor a durar e ter tamanho…
(Se verdadeira dimensão é a realidade)
Ser real é a única coisa verdadeira do mundo.
Fernando Pessoa. Todas as teorias, todos os poemas.
Apesar das diferenças nos pontos de vista sobre o real de Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, ambos compartilham da ideia de que a realidade é o concreto, é aquilo que está presente no plano físico, o material, mesmo que os próprios autores sejam meras “criações”, por assim dizer, da mente de Fernando Pessoa. Para eles, a poesia é menos real do que uma flor, pois nós podemos enxergar e tocar a flor, ignorando o fato de que podemos ler a poesia e, ao invés de tocar, nos sentirmos tocados por ela. Tanto para seus heterônimos quanto para Fernando Pessoa, a realidade é indubitavelmente um grande mistério, já que não é possível saber com certeza a concretude das coisas. Algumas são meros frutos de nossas cabeças, que tornamos reais em nosso mundo; já outras preferimos ignorar, o que as tornam menos reais do que algo criado por nossa mente.
Um dos poemas de Álvaro de Campos que explicita bem o sentido da dúvida e da incerteza das coisas e dos eventos reais é “Realidade”, no qual o poeta diz:
“Tento reconstruir na minha imaginação
Quem eu era e como era quando por aqui passava
Há vinte anos…
Não me lembro, não me posso lembrar.
O outro que aqui passava então,
Se existisse hoje, talvez se lembrasse…
Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro
Do que esse eu-mesmo que há vinte anos passava aqui!”
Álvaro de Campos. Realidade.
Todavia, a realidade nunca será totalmente desvendada, prosseguindo como um mistério tão profundo quanto o oceano e tão extenso quanto a Via Láctea em que habitamos. Nada e nem ninguém poderá dizer o que de fato é real e o que não é, e, assim como dizia Alberto Caeiro, apenas a poesia dará conta de tal fardo, o de exprimir o que a realidade é, e mesmo assim não será possível entender sua totalidade.
Referências
CAMPOS, Álvaro de. Realidade. Arquivo Pessoa: Obra Édita. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/60. Acesso em: 7 mar. 2021.
Fernando Pessoa. Wikipedia, 2021. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Pessoa. Acesso em: 7 mar. 2021.
Frases de Alan Watts para refletir profundamente sobre a vida. A mente é maravilhosa, 2021. Disponível em: https://amenteemaravilhosa.com.br/frases-de-alan-watts-para-refletir/. Acesso em: 7 mar. 2021.
H.P. Lovecraft. Pensador, 2021. Disponível em: https://www.pensador.com/frase/NDgzNTAz/. Acesso em: 7 mar. 2021.
PAIS, Amélia Pinto. Para Compreender Fernando Pessoa: uma aproximação a Fernando Pessoa e heterônimos. São Paulo: Claro Enigma, 2012.
Crédito da imagem: Medium