Como a literatura pode ser um meio de desconstruir a ideia de uma história única e europeia?
A maioria da população foi ensinada, durante grande parte do período escolar, que pessoas que habitam o continente africano, muitas vezes confundido como um país só, vivem suas vidas rodeadas de sofrimentos, angústias e miséria. Entretanto, quando é feito um estudo mais aprofundado sobre o assunto, se descobre que o cotidiano desses sujeitos não é da forma como é apresentada aos alunos. Os povos africanos vivem da mesma maneira que qualquer um no globo, possuindo seus problemas históricos e sociais, sejam eles particulares ou os mesmos que assolam outros países. Porém, a visão que a maioria do mundo tem sobre essas sociedades é um pouco diferente, levando à construção de preconceito, sendo os meios de comunicação um dos principais responsáveis por criar esse tipo de pensamento, justamente os meios que deveriam libertar a mente dos demais e evitar a disseminação de uma única história[1].
Entretanto, para se ter uma noção da importância da literatura na desconstrução desse pensamento é necessário também ter em mente que quando analisamos os protagonistas de histórias infantis podemos perceber uma diferença significativa entre protagonistas brancos e negros. As figuras negras são centenas de vezes menos presentes no papel de personagem principal, chegando a não aparecer nem mesmo como secundários, e quando aparecem têm suas imagens distorcidas e deturpadas, sem contar quando são retratadas de forma racista, como é o caso do autor Monteiro Lobato, muitas vezes acusado por dar descrições racistas das personagens negras em seus livros.
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Logo, é preciso que haja um tipo de literatura inclusiva, que não prive as crianças de se verem em meio às aventuras vividas geralmente por protagonistas que não as representam, incapacitando-as de criarem suas próprias histórias com personagens negros e fazendo-as acreditar que não é possível que pessoas como elas embarquem em algo fantástico.
Baseada em suas experiências literárias, surge a ideia da criança de inserir, em suas histórias, personagens brancos vindo de países que ela jamais visitou, com costumes totalmente diferentes daqueles com os quais ela tem contato diariamente e com uma cultura alheia à sua, o que se caracteriza como a colonização da imaginação, que tem como conceito o fato de muitas pessoas, principalmente de países em desenvolvimento, terem acesso apenas a conteúdos midiáticos provenientes de países que são ou foram, em algum momento da história, grandes potências. Dessa maneira, é restrito ao leitor que conheça muito pouco, quando não nada, dos conteúdos produzidos dentro do seu próprio país; em contraponto, o mesmo terá amplo conhecimento de obras inglesas, por exemplo. Tudo isso leva a uma menor produção literária que aborda, de fato, o cotidiano do cidadão africano e seus costumes sem influência de outros lugares.
Quando falamos sobre colonização da imaginação, temos como exemplo a fala de Chimamanda Ngozi Adiche durante uma de suas palestras para a TED em 2010.
“[…] Eu escrevia exatamente os tipos de histórias que eu lia. Todos os meus personagens eram brancos de olhos azuis. Eles brincavam na neve. Comiam maçãs e falavam muito sobre o tempo, em como era maravilhoso o sol ter aparecido […]. Eu nunca havia estado fora da Nigéria. Nós não tínhamos neve, nós comíamos mangas […]. Meus personagens também bebiam muita cerveja de gengibre porque as personagens dos livros britânicos que eu lia bebiam cerveja de gengibre. Não importava que eu não tivesse a mínima ideia do que era cerveja de gengibre. E por muitos anos depois, eu desejei desesperadamente experimentar cerveja de gengibre. […].”
(Chimamanda Ngozi Adichie, TED, 2010)
A autora, assim como muitas outras crianças da África, foi bombardeada com produtos da cultura inglesa, fazendo de suas produções um subproduto derivado dos anos em que seu país era colonizado por europeus. Por isso, foi necessário que existisse alguma espécie de literatura que valorizasse o seu próprio povo e mostrasse para o resto do mundo que ali também havia produção cultural, mas, principalmente, para fazer com que as pessoas que habitam um continente tão rico e cheio de histórias abandonassem a influência estrangeira que, aos poucos, eliminava os resquícios de uma cultura, causando o que conhecemos como etnocídio[2].
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Porém o país estava tomado por colonizadores que abominavam a cultura de seus dominados, tornando-as de certa forma proibida, já que muitos povos europeus viam a África como um continente pobre a ser explorado, e isso durou até a metade do século XX, quando, por decorrência da Segunda Guerra, o continente foi aos poucos deixando de ser uma colônia.
Nesse contexto, logo após a independência de alguns países africanos em 1975, as histórias que eram passadas por oratória, já que qualquer tipo de cultura era proibido, começaram a ser publicadas. Surge, então, a literatura africana pós-colonial, que pode ser dividida em duas etapas[3], a primeira ainda na década de 70 como uma fase nacionalista, na qual os autores africanos tentaram restaurar a cultura que lhes foi tirada, buscando construir um discurso de nação. Já na década de 80, surgiu uma segunda fase, que veio para criticar essa nova nação que foi construída após a independência.
“[…] A partir do final da década de 80 e principalmente na década de 90, a gente percebe a iminência de uma nova estética […] não mais preocupada em construir um projeto de nação, mas sim em debater o próprio processo identitário, em discutir e problematizar a nação construída e mostrar as suas contradições e pluralidades identitárias.”
Entrevista com o historiador Viegas F. da Costa no canal LiteratusTV em 2015.
Foi durante essa segunda fase que apareceram escritores como Mia Couto, autor de Terra Sonâmbula (Companhia das Letras, 2007), Pepetela, com sua obra Mayombe (Leya Brasil, 2013), entre outros.
Com a ascensão de uma literatura que possibilitava um conhecimento maior da história de seu país e que tinha como protagonista personagens negros, tornou-se possível fazer florescer o sentimento de pertencimento a um ambiente nas pessoas que não se encaixavam nos estereótipos vistos em uma literatura estrangeira. O resultado disso foi um crescimento em produções originais que retratavam de forma original o cotidiano dos povos africanos. Um dos exemplos mais recentes é No seu Pescoço (Companhia das Letras, 2017) da autora já citada Chimamanda Ngozi Adiche, que também escreveu Americanah (Companhia das Letras, 2014). Além de livros, o mercado cinematográfico e artístico em geral ganhou uma repercussão muito maior, tanto no próprio continente quanto mundo afora. Por exemplo, pode-se citar a adaptação para as telas de cinema do livro Terra Sonâmbula de Mia Couto, que teve sua estreia em 2007, dirigida por Teresa Prata, com um elenco composto por atores negros e que segue a mesma história da obra original.
Todavia, ainda é necessário um incentivo maior para que crianças do mundo inteiro tenham contato com uma literatura proveniente de países da África, já que muitas escolas ainda não possuem literatura africana em sua grade curricular nem livros disponíveis em suas bibliotecas, portanto, é preciso uma pressão a mais sobre o órgão responsável por inserir livros no PNLD (Programa Nacional do Livro e do Material Didático) para que crianças negras de todo o Brasil possam ter em mãos exemplares de livros que ajudarão a mudar a maneira como as mesmas se veem e se imaginam no mundo.
Para que se obtenha um resultado favorável e mais pessoas possam ler obras que fogem de suas zonas de conforto, é necessário que haja uma reeducação nas escolas, como a inserção de temas relacionados a esse assunto e uma nova maneira de retratar o continente africano, que não o coloque como um lugar sem cultura e que não possui condições de produzir material de entretenimento, como ainda vemos em livros de histórias espalhados pelo mundo.
Só assim se dará o início de um processo de descolonização da imaginação e do pensamento tanto dos africanos em si quanto daqueles que possuem uma visão eurocêntrica sobre os povos que vivem e constroem suas vidas no continente africano, assim como qualquer outra pessoa em qualquer outro lugar do mundo.
[1] Termo usado por Chimamanda Ngozi Adiche em sua entrevista no TED em 2010.
[2] Ato de destruir qualquer traço remanescente de uma cultura, seja material, como símbolos ou obras artísticas que possuem representação cultural, seja imaterial, como uma língua ou uma crença religiosa. Fonte: Mundo Educação.
[3] A ideia da literatura africana dividida em duas partes teve como base o discurso do escritor e historiador Viegas F. da Costa.
Créditos da imagem: Ilustração do livro “Kakopi, Kakopi!”, de Rogério Andrade Barbosa.