8 poemas de Adelaide Ivánova: para conhecer poesia contemporânea

Adelaide Ivánova é uma das principais vozes da poesia contemporânea no Brasil, cujo trabalho é marcado pela coragem, pela sensibilidade e pela conexão com questões políticas e sociais urgentes.

Adelaide Ivánova é uma poeta, tradutora e artista visual brasileira, nascida em Recife em 1982. Ela cresceu em meio à cultura nordestina e, desde cedo, demonstrou interesse pelas artes e pela literatura. Aos 18 anos, mudou-se para São Paulo para estudar fotografia e, posteriormente, formou-se em Letras.

Ao longo de sua carreira, Adelaide tem publicado diversos livros de poesia, entre eles “O Martelo” (2017), “Polaróides” (2019) e “Adeus, Lírica” (2020). Seu trabalho é conhecido por abordar temas como violência de gênero, sexualidade, resistência e política, e é marcado pela força e coragem.

Além de sua produção poética, Adelaide é uma defensora da liberdade de expressão e dos direitos humanos. Ela tem sido uma voz ativa na luta contra o fascismo, a homofobia, o racismo e a misoginia, e seu trabalho artístico muitas vezes se conecta com questões políticas e sociais.

Adelaide também é conhecida por sua atuação como tradutora, tendo traduzido obras de escritoras como Audre Lorde, Gloria Anzaldúa e June Jordan para o português. Além disso, ela trabalha como professora de literatura e oficineira de escrita criativa, compartilhando sua paixão pela poesia com outras pessoas.

Conheça abaixo 6 poesias de Adelaide Ivánova

1. a porca

Adelaide Ivánova
Livro da autora que contém os poemas “A porca”, “A mula” , “A sentença”, entre outros COMPRE NA AMAZON

a escrivã é uma pessoa
e está curiosa como são
curiosas as pessoas
pergunta-me por que bebi
tanto não respondi mas sei
que a gente bebe pra morrer
sem ter que morrer muito
pergunta-me por que não
gritei já que não estava
amordaçada não respondi mas sei
que já se nasce com a mordaça
a escrivã de camisa branca
engomada
é excelente funcionária e
datilógrafa me lembra muito
uma música
um animal não lembro qual.

2. a mula

“um silêncio amamentado com veneno, 
             um silêncio imenso” 
                       Paul Celan, tradução de Flávio R. Kothe

mede o valor de seu empenho
e afirmações tendo
como medida o peso que carrega
como boa mula não faz ideia
de quem a monta mas
está a seu serviço

como toda boa mula
empaca na beira do
abismo não morrer
é sua vingança
filomela sem língua
e mula
não pula por ódio
não por por esperança
(e nisso há uma diferença
fundamental).

a mula-lavínia
também teve sua língua
arrancada de lucrécia
mula e adormecida
não arrancaram
nada mas a chantagem
é também uma mordaça
a mula-talia também
dormia quando foi
violada

foi maury e mula
que conseguiu
abrir a boca
e ao virar asno
mudou o próprio
nome e o das coisas
a nova mula aprendeu
alemão e vergewaltigung
deixa de ser o que é
vira um som qualquer
dito com a mesma
entonação que cometa
fúria jacaré passarinho
fósforo procissão pedra
cacto

a mula empacada
quase muda ao menos
nunca foi surda
“até das pedras lhes ouço a desventura”
cada um tem o que diz
a mula em zarathustra
a mula de hilst
mas o rouxinol que canta
é o rouxinol macho.

3. a sentença 

        duas releituras de duas odes de ricardo reis 

I.

pesa o decreto atroz do fim certeiro.
pesa a sentença igual do juiz iníquo.
pesa como bigorna em minhas costas:
         um homem foi hoje absolvido.
se a justiça é cega, só o xampu é neutro:
quão pouca diferença na inocência
do homem e das hienas. deixem-me em paz!
         antes encham-me de vinho
a taça, qu’inda que bem ruim me deixe
ébria, console-me a alcoólica amnésia
e olvide o que de fato é essa sentença:
         a mulher é a culpada.

II.

pese a sentença igual do ignoto juiz
em cada pobre homem, que não há motivo
para tanto. não fiz mal nenhum à mulher e
         foi grande meu espanto
quando ela se ofendeu. exagerada, agora
reclama, fez denúncia e drama, mas na hora
nem se mexeu. culpa é dela: encheu à brava
         a garbosa cara.
se a justiça é cega, só a topeira é sábia.
celebro abonançado o evidente indulto
pois sou apenas homem, não um monstro! leixai
         à mulher o trauma.

4. o broche

Adelaide Ivánova
13 Nudes, de Adelaide Ivánova, foi classificado pela autora como um “livrinho fofo de amor”. Dedicado a cinco meninos amados, a coletânea, como indica o título, é composta por treze poemas com dedicatórias, seguindo a linha dos famosos poemas-recibo que a poeta costuma publicar em seu blog e suas redes sociais, além de uma “escovada” final, que mostra que o afeto e a afetação não diminuem a força política da sua obra.  COMPRE NA AMAZON

a mulher de burca
entrou no metrô
atrás do marido
a mulher de burca
precisou apenas
chegar para ser
espetacular
a mulher de burca
me espanta me espanta
que se estabeleça
que uma mulher
deva usar a burca.

*

tentei decorar
um poema para
a mulher de burca
que me veio à mente
enquanto tentava
não observá-la
essa é afinal
a função da burca
e como ela deve
ser considerada
a burca tornou-se
maior que a mulher.

*

acontecem muitas
coisas no metrô
acontecem muitas
coisas na alemanha
mas ninguém se olha
nem na alemanha
e nem no metrô
pra mulher de burca
todo mundo olhou
mas ninguém a viu
ninguém julga ter
algo a ver com isso.

*

a mulher de burca
estragou meu sono
estragou meu sono
o brochinho azul
feito de miçangas
ostentado pela
burca da mulher
terrível enfeite
revolução muda
da mulher na burca.

*

embaixo da burca
há uma mulher.

*

eu sinto mais medo
de um deus misógino
que da lei que diz
à mulher a burca
quer dizer não sei
sempre haverá broches
de miçanga azul.

——–

5. a moral

poderia escrever
um poema
de amor
para o
fato de
que atravessamos
todas as ruas sem respeitar os semáforos eu

vejo um
atrevimento de
sua parte
não ter
medo de
morrer sua
certeza que
os carros vão parar para você passar eu

pararia eu
ainda paro
fico olhando
fingindo não
olhar na
contraluz os
seus ossos
seus pelos
não aparados
o seu pau que não chupei porque você não deixou

alegando não
moral mas
sei lá
o quê
esqueci estava
bêbada mesmo
assim dormiu
nu bem
aqui quando
levantou vestiu a calça sem cueca quisera eu ser esse
                                                                          [jeans achei

que depois
de cruzar
todos os
sinais fechados
ao seu
lado arriscando
minha vida
teria o direito de chupar seu pau até amanhecer mas

a única
coisa sua
que comi
foi uma
mozartkugel nojenta
com recheio
de marzipã.

6. o urubu

corpo de delito é
a expressão usada
para os casos de
infração em que há
no local marcas do evento
infracional
fazendo do corpo
um lugar e de delito
um adjetivo o exame
consiste em ver e ser
visto (festas também
consistem disso)

deitada numa maca com
quatro médicos ao meu redor
conversando ao mesmo tempo
sobre mucosas a greve
a falta de copos descartáveis
e decidindo diante de minhas pernas
abertas se depois do
expediente iam todos pro bar
o doutor do instituto
de medicina legal escreveu seu laudo
sem olhar pra minha cara
e falando no celular

eu e o doutor temos um corpo
e pelo menos outra coisa em comum:
adoramos telefonar e ir pro bar
o doutor é uma pessoa
lida com mortos e mulheres vivas
(que ele chama de peças)
com coisas.

——–

7. para laura

em 1998 quando encontraram
o corpo gay de matthew shepard
sua cara tinha sangue por todo lado
menos duas listras
perpendiculares
que era por onde suas lágrimas
haviam escorrido
naquele dia o ciclista
que o encontrou não
ligou para polícia logo que o viu
porque o corpo de matthew
estava tão deformado
que o ciclista achou ter visto
um espantalho

sábado passado em são paulo
a polícia matou laura
não sem antes
torturá-la laura
foi filmada ainda viva
por outro sujeito
que em vez de ajudá-la
postou no youtube o vídeo
d’uma laura desorientada
e quem não estaria
tendo sangue na boca e na parte
de trás do vestido

laura tem um corpo
e um nome que lhe pertencem
laura de vermont presente!
foi assassinada pela nossa indiferença
e pela polícia brasileira
tinha 18 anos

——–

“(…) veja bem sr. ministro
em minha cama não se pede visto já troquei
lençóis e fronhas sujos de sêmen made in
espanha hungria áustria zimbábue iraque
alemanha fazemos a alegria uns dos outros
e diga-me sr. ministro
se não fôssemos nós quem mais a faria? e quem
faria o crescimento dos seus índices demográficos?
(…)
sem nós expatriados de onde viriam tantas delícias
as teses os ensaios a vida as baladas os bares e os
quadros com os quais lucram vossos museus
de onde viriam os livros premiados com os quais
lucram ou lucravam suas poeirentas livrarias?
haveria pasolini este homem europeu um futuro
mais duradouro tivesse pasolini se refugiado?”

“a escrivã é uma pessoa
e está curiosa como são
curiosas as pessoas
pergunta-me por que bebi
tanto não respondi mas sei
que a gente bebe pra morrer
sem ter que morrer muito
pergunta-me por que não
gritei já que não estava
amordaçada não respondi mas sei
que já se nasce com a mordaça”

“(…) as testemunhas inventaram
parentescos amizades citaram
relações imaginárias um padrasto
que fui ter com o príncipe
em seu quarto está tudo nos autos
palavras tantas entram em
mítica instância viram
documento poema oficial
mas incompetente as testemunhas
todas sabem que mentem o que elas
não sabem é que em latim
testemunhas e testículos
advêm da mesma base o que nesse
caso é um insulto com os testículos”

8. o bom animal

quantos palmos
de largura tem
o seu quadril?
desconfio que
o meu seja
mais largo
ao menos
foi o que senti
ao sentar
em você
queria eu
ter sentado
na sua cara
gentil
como um bom animal
e submissa
como um bom animal
eu me alegraria
com sua língua em mim
e grata
como um bom animal
eu lamberia
sua cara
molhada
pegajosa
cheirando a mim
mas minha língua
minha pobre língua
só lambeu suas
pálpebras
Humbert Humboldt
eu não sou nenhuma
Henriette Herz
me deixe pousar
a cara em seu pau
e me afogar no
silêncio entre
suas coxas e testículos
sua magreza me insulta
Humboldt
mas para cada osso
Humboldt
me deixe lembrá-lo
há a carne
correspondente.


Referências:

Conheça 5 poesias de Maria Firmina dos Reis