Ulysses é um dos maiores clássicos da literatura, ele foi publicado em Paris no ano de 1922 pelo escritor dublinense James Joyce. O livro lhe deu fama internacional, pela estilo novo, por envolver outro clássico, a Odisséia, de Homero, e pelo fluxo de consciência, uma forma de escrita que Virginia Woolf também usou. Abaixo, os trechos do diário dela que expõe todo o seu descontentamento perante o livro e a fama de Joyce, talvez um pouco de orgulho ferido, de inveja, mas é a impressão de uma leitora e, como ela mesma explica, o livro não causou um bom impacto à primeira vista, o que acabou influenciando toda a sua leitura e crítica perante o romance.
15/11/1918
[Mr. Eliot] admira imenso Mr. Joyce. Mostrou-nos uns três ou quatro poemas para lhe darmos uma vista de olhos – o fruto de dois anos de trabalho, visto que ele trabalha o dia inteiro num banco e, segundo o seu modo racional de pensar, acha que o trabalho regular faz bem às pessoas de constituição nervosa. Fiquei mais ou menos consciente de um seu sistema, muito intricado e altamente organizado, de crença poética; devido às suas cautelas, e ao seu cuidado excessivo na escolha da linguagem, não descobrimos muita coisa sobre essa crença. Acho que ele é um adepto das “frases vivas” e acredita que há uma diferença entre estas e as frases mortiças; acha que se deve escrever com um cuidado extremo, respeitar sintaxe e gramática; e, assim, fazer esta poesia nova florir dos estames da mais antiga poesia. [p. 132]
26/01/1920
O dia seguinte ao do meu aniversário (…) e sinto-me mais feliz hoje do que ontem porque esta tarde cheguei a uma ideia sobre uma forma nova para um romance. E se uma coisa se desenvolver a partir de outra – como em “An Unwriten Novel”, só que durante uma duzentas páginas em vez de dez – de dez – não dará isso a maleabilidade e a leveza que quero, não se aproximará mais, mantendo todavia a forma e a velocidade, e abarcando tudo, tudo? A minha dúvida é até que ponto poderá <abranger> abarcar o coração humano… Dominarei eu completamente o diálogo para o tecer ali? Porque imagino que a abordagem será completamente diferente, desta vez: sem andaimes; mal se vendo um tijolo; toda crepuscular, mas o coração, a paixão, o humor, tudo com o brilho o fogo na neblina. Depois vou encontrar espaço para tanta coisa, uma alegria, uma incongruência – um passo jovial a meu bel-prazer. Se domino suficientemente as coisas ou não – essa é que é a dúvida, mas imagina A marca na Parede, K.G. [Kew Gardens} e “An Unwriten Novel” dando-se as mãos e dançando unidos. Que unidade será é o que está ainda por descobrir: o tema é um vazio pra mim, mas vejo possibilidades infinitas na forma, que me ocorreu mais ou menos por acaso há duas semanas. Suponho que o perigo é este maldito eu egoísta; que em minha opinião é a ruína de Joyce e da [Dorothy] Richardson: serei assim tão flexível e rica que possa erguer um muro entre mim e o livro, sem que ele se torne limitativo e restritivo, como no caso do Joyce e da Richardson? A minha esperança é que já aprendi o bastante do meu ofício, de modo que posso apresentar toda a espécie de diversões. [ p. 193]
20/09/1920
Segundo Joyce, Ulisses é a maior personagem da história. Joyce como homem é insignificante, usa lentes muito fortes, e parece-me um pouco com o [Bernard] Shaw, é maçador, sempre concentrado em si mesmo, e tem uma confiança inabalável de si próprio. [p. 224]
26/09/1920
Mas acho que me importei mais do que deixei transparecer; porque, não sei o como, o Jacob parou, e ainda por cima no meio daquela festa que me agradava tanto. (…) mas eu pensei que o que estou a fazer está provavelmente a ser mais bem feito por Mr. Joyce. [p. 224]
16/08/1922
Devia estar a ler Ulisses e a forjar os meus argumentos pró e contra. Até agora li duzentas páginas – não chega a um terço; e os primeiros dois ou três capítulos divertiram-me, estimularam-me, encantaram-me, interessaram-me – até ao fim da cena do cemitério; e depois desconcertou-me, maçou-me, irritou-me e desiludiu-me, como se ele fosse um estudante enjoadiço a coçar as borbulhas. [p. 282]
26/08/1922
Cada vez gosto menos de Ulisses – isto é, cada vez o acho menos importante; e nem sequer me preocupei conscientemente em lhe perceber os sentidos. Graças a Deus que não tenho de escrever obre o livro. [p.286]
06/09/1922
Acabei o Ulisses, e acho que é fumo sem fogo. Gênio tem, acho eu; mas não é de primeira água. O livro é difuso. É intragável. É pretensioso. É mal-educado, não só no sentido óbvio, mas também no sentido literário. Ou seja, um escritor de primeira ordem tem muito respeito pela escrita para se permitir usar truques; pregar sustos; fazer acrobacias. Lembra-me o tempo todo um aluno imaturo de um colégio interno, por exemplo o Henry Lamb, cheio de inteligência e potencialidades, mas tão preocupado com a impressão que pode causar e tão egoísta que perde a cabeça, se torna extravagante, amaneirado, barulhento e irrequieto, faz com que as pessoas bondosas tenham pena dele, e as pessoas severas se aborreçam; e fica-se com a esperança de que isso lhe passe com a idade; mas como o Joyce tem quarenta anos parece pouco provável. Não li com atenção; e só li uma vez; e é muito obscuro; por isso sem dúvida que lhe atamanquei as virtudes mais do que seria legítimo. Sinto-me bombardeada e salpicada por miríades de balas minúsculas, mas não se recebe uma ferida mortal na cara – como Tolstoi; por exemplo; mas é inteiramente absurdo compará-lo a Tolstoi. [p. 289]
Depois de ter escrito isso, o Leornad pôs-me nas mãos uma crítica muito inteligente do Ulisses, no Nation de Nova Iorque; que, pela primeira vez, analisa o sentido, e que realmente o torna muito mais impressivo do que eu tinha pensado. Mesmo assim, acho que as primeiras impressões têm valor e alguma verdade duradoura; de modo que não cancelo as minhas. Tenho de ler alguns capítulos outra vez. Provavelmente a beleza final da escrita não é nunca sentida pelos contemporâneos; mas acho que deviam ficar aturdidos; e eu não fiquei. Mas, por outro lado, eu tinha-me assanhado de propósito; mas, por outro lado, estava demasiado estimulada pelos louvores de Tom (…). [p. 289/290]
Virginia Woolf – Diário. Primeiro Volume, Bertrand de Portugual, tradução de Maria José Jorge