Numa loja, uma senhora caminhava em direção ao caixa, olhando os souvenires na prateleira de vidro. Pensava no silêncio, no quanto não gostava dele, pois era como se a vida a chamasse para uma direção desconhecida. Por sorte, o rádio da loja tocava uma música bonita que camuflava a sensação de que o silêncio era um leão faminto. A senhora com ares de burguesa se chamava Aparecida Gonçalves Silva e dizia, com os lábios pintados de vermelho, que preferia ser chamada por Senhora Ida. E abriu a carteira de couro marrom à procura de duas notas de cinquenta reais. A funcionária da loja, uma moça jovem, de olhar cansado, cabelo despenteado e chiclete na boca, observava os vários anéis de ouro nas mãos envelhecidas da Senhora Ida que, atenta, fingia não perceber a facilidade em notar a sua rica vaidade, ou pelos anéis ou pelo batom vermelho. E suas mãos deslizaram sobre as notas perfeitamente guardadas:
— Noventa e cinco e cinquenta?
A funcionária, distraída, apenas assentiu com a cabeça, fez uma bola de chiclete; ploc; e segurou o dinheiro.
— Eu gosto de sair de casa nesses dias de chuva.
— Eu não gosto, pois acordo muito cedo, pego três ônibus até chegar aqui. Nos dias de chuva é pior; ploc. Você tem cinquenta centavos?
Quando a moça terminou a frase, a música que tocava cessou. Não era o fim da música, era o rádio fora do ar. Um silêncio tímido percorreu todo o ambiente até transformar a loja num depósito de inquietação. A funcionária, ao abrir a gaveta do caixa, fez o metal ressoar como um violino desafinado. Senhora Ida, incomodada com o único som invadindo o intenso silêncio, falou:
— Procure ver cada detalhe do seu dia, encare o caminho até aqui como um passeio, uma maneira de reparar na cidade, nas casas, no trânsito, no chão, nos passos de pessoas que vão e vêm em busca de alguma coisa, assim como você. — A voz afinada encobria o silêncio. – Repare como é bonita a chuva molhando a rua cinza. Você já presenciou isso? Estar sentada no ônibus num dia ensolarado e, de repente, gotas grandes caírem do céu pintando devagar cada parte do chão? E o vidro absorvendo cada gota de chuva como se fosse um ímã? Até as pessoas correndo para se esconder da chuva é bonito, apesar da aflição que elas sentem, com medo da água. Não é engraçado… — e olhou no crachá da funcionária onde estava escrito “Camila Soares Gomes”. — Camila? As pessoas têm medo de água! — A intenção de provocar o riso foi em vão e por medo do silêncio ela completou. — Camila, eu gostaria de um chiclete.
A funcionária colocou de imediato as mãos no bolso e estendeu o pacotinho:
— É de tutti-fruti.
— Ótimo!
Lá fora os carros buzinavam, pessoas com pressa passavam em frente à loja, algumas fumando, outras falando ao celular. Lá dentro as duas mulheres travavam uma batalha silenciosa de chicletes, quem faria a próxima bola? Sem pestanejar, Senhora Ida pegou sua sacola de compras e quebrou novamente o silêncio:
— O troco é seu; ploc.
E caminhou até a porta da loja, olhou o movimento na rua e não soube escolher entre esquerda ou direita. Respirou tão fundo como se buscasse o silêncio, que ela não queria, dentro de si.
A Rua Trinta e Sete mantinha um ar bucólico independente de calor ou frio, chuva ou sol. E naquele dia o ar se mostrava úmido, como se gotículas de chuva mergulhassem nos pulmões. Para os visitantes, isso era bom; para os moradores da cidade, absolutamente nada, apenas a cidade formando uma fotografia viva.
Senhora Ida decidiu pelo lado direito, contornou a pequena esquina tranquilamente e avistou, do outro lado da rua, uma grande caixa dourada na vitrine de uma loja. Sentiu uma vontade absurda de ter aquela caixa. Para quê? Ela não sabia, era como comer: a vontade vem e pronto. Ao iniciar a travessia para o lado de lá, a caixa brilhou, era um relógio dourado. Mas a Senhora Ida, em segundos, perdeu seu semblante saudável, sua pele ficou quente, pálida e seu olhar era como um filme em câmera lenta. Ela estava engasgada com o chiclete. Faltava-lhe ar. Será que reconhecia isso? Será que, enquanto caía, pensava “estou engasgada com o chiclete”? Mas foi assim: ela deu mais três passos, estava no meio da rua, empalideceu, caiu e bateu a cabeça no chão.
O ponteiro do relógio dourado andou alguns segundos. Rapidamente um círculo de pessoas se formou assustado, curioso e incrédulo em torno da mulher e, mesmo assim, o mais perfeito silêncio estava presente. As palavras de pena foram abafadas pela chuva forte que começava a cair e pelo silêncio nos olhos estalados do corpo estendido no chão. Outro círculo, vermelho, se formou debaixo da cabeça do corpo que fora a Senhora Ida. A chuva era companheira do silêncio. Um silêncio com outro nome: morte.
“O Silêncio” foi escrito em fevereiro de 2011, por Francine Ramos
Respostas de 4
Que conto fantástico, parabéns!
Brilhante, Fran!
Desconhecia esse seu lado contista! Você tem outros?
Muito obrigada, Igor!
Obrigada, flor!
Sim, tenho outros, alguns publicados há muuuiitoo tempo por aqui. Quero escrever novos, para voltar a exercitar mais esse meu lado 🙂