Aos 76 anos, Maria Valéria Rezende lançou, em abril de 2019, seu mais recente romance. Carta à Rainha Louca foi publicado pela Alfaguara, selo da Companhia das Letras. Inclusive, já fizemos a resenha sobre ele aqui na Livro & Café, fique à vontade para conferir.
Vencedora do Prêmio Jabuti em 2009, com o livro No Risco do Caracol, em 2013, com Ouro Dentro da Cabeça, ambos na categoria infanto-juvenil, e em 2015, na categoria de romance e livro do ano de ficção com Quarenta Dias. Em 2017, recebeu o Prémio Casa de Las Américas e o Prêmio São Paulo de Literatura por Outros Cantos, além de ficar em terceiro lugar no Jabuti neste mesmo ano. É uma das fundadoras do Mulherio da Letras, coletivo que reúne escritoras do Brasil inteiro.
Maria Valéria Rezende, essa mulher extraordinária – mestre, feminista, escritora, freira e educadora popular – que gosta de ser chamada de Valéria, conversou comigo por meio de uma ligação no Facebook. Em uma hora de prosa, a escritora contou um pouco sobre a longa trajetória que a levou até seu livro mais recente, inspirado em documentos que encontrou em um arquivo de Lisboa na década de 1980. Conversamos, ainda, sobre a realidade das escritoras e também sobre a condição geral dos escritores no Brasil. Além disso, falamos sobre o embuste das redes sociais, sobre sua viagem de mentira, sua opinião acerca das biografias – já que ultimamente muitos são os pedidos para que ela escreva a sua própria – e, para finalizar, ela deixou um recado para os jovens ficcionistas.
Aquela que escreve em linguagem popular
No início da década de 1970, circulava entre os operários, pelas fábricas Brasil à fora, três volumes da Coleção Cadernos da História da Classe Operária. Publicados pela Ação Operária Católica, os livros narravam o percurso dos trabalhadores brasileiros de 1500 a 1945. Como naquele período da ditadura militar a repressão política era intensa, Maria Valéria Rezende não assinou a obra que considera seu maior sucesso editorial. Na contracapa de um dos volumes mais recentes, de 1989, está escrito: “As publicações da Ação Católica Operária – ACO, são todas de linguagem simples e do ponto de vista dos trabalhadores. Tem como objetivo a formação de militantes comprometidos com a construção de uma sociedade mais justa, igualitária e fraterna”.
Formada em Língua e Literatura Francesa pela Faculdade de Nancy e em Pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Maria Valéria Rezende atuou na educação popular desde muito cedo. E se envolveu com o movimento sindical, principalmente os que mantinham relações com os setores progressistas da Igreja Católica onde ela era, e ainda é, freira. Fez mestrado em Sociologia na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Nos anos 1970 começou a atender a uma demanda importante: transcrevia os escritos acadêmicos, desembaraçava sua linguagem truncada e os reescrevia de uma forma que a população pudesse compreender. “Comecei a ficar conhecida como aquela que escrevia em linguagem popular, que é uma coisa que todo mundo deveria ser capaz de fazer, explicar as coisas com clareza, sem contaminação da linguagem acadêmica”. O movimento precisava de uma sistematização acessível ao povo e, ao dar resposta a essa necessidade, Valéria iniciou seus estudos históricos.
Anos mais tarde, na década de 1980, recebeu um pedido da Comissão para o Estudo da História das Igrejas na América Latina e Caribe (CEHILA) para escrever um livro sobre a Igreja Católica no período colonial no Brasil, “mas do ponto de vista dos oprimidos, dos vencidos, não da instituição eclesiástica”, frisa ela. Assim, em 1987, foi lançado Não se Pode Servir a Dois Senhores, pelas Edições Paulinas.
O lugar da mulher branca
Em 1982, Valéria segurou em suas mãos um calhamaço até então desconhecido: parte de uma documentação sobre Isabel Maria, religiosa responsabilizada por fundar e dirigir um recolhimento de mulheres no sertão, às margens do rio Araçuaí, em Minas Gerais. Apesar das regras do arquivo português não permitirem, a pesquisadora fez amizade com o rapaz que trabalhava no acervo e conseguiu as cópias de que precisava.
Esse achado, porém, foi resultado de muita pesquisa. Dois anos antes, o CEHILA lhe ofereceu uma bolsa de estudos em um Seminário no México: “Eu me propus a pesquisar a história da mulher na Igreja na América Latina”. Por oito meses, vasculhou os arquivos mexicanos e produziu artigos acadêmicos sobre essa temática. Como resultado de sua busca, Valéria identificou “um padrão de como a mulher branca era tratada na América Latina no período colonial”.
Em sua análise, notou que a realidade das mulheres brancas era diferente em relação a das indígenas e negras escravizadas. Para começar, eram poucas, especialmente no século XVIII durante o Ciclo do Ouro, quando a maioria da população branca era constituída de homens que chegavam tanto no Brasil quanto na América como um todo, com o objetivo de encontrar uma forma de enriquecimento rápido para, então, retornar ao seus países de origem.
Valéria notou algo que até então não chamou a atenção dos acadêmicos: “Esse lugar da mulher branca, que era um penhor de alianças entre famílias poderosas, alianças políticas e econômicas que são seladas pelo casamento entre os filhos”. Um lugar de submissão e silenciamento, já que, dentro desse arranjo social, “as mulheres brancas não possuíam nenhuma autonomia”.
Nos anos seguintes, sua pesquisa continuou, não sem dificuldades. “A gente quase não encontrava nenhum testemunho, nenhum documento escrito pelas próprias mulheres, era sempre os homens falando das mulheres, a única exceção eram as freiras, porque as freiras sim eram alfabetizadas e educadas”. Como exemplo, cita a história de Juana Inês de La Cruz, uma das maiores poetas barrocas da América Latina, que escolheu o enclausuramento depois que seu pai a proibiu de se disfarçar de homem para frequentar a Universidade. “No convento ela podia ler e escrever pelo menos, com liberdade, e não era controlada por nenhum homem que ficava tomando conta do que ela ia dizer”.
Em 1982, finalmente, Valéria passou um mês e meio em Portugal. Lá, visitou o Arquivo Ultramarino de Lisboa. O processo incompleto sobre Isabel Maria continha uma carta da própria mulher, defendendo-se das acusações a ela atribuídas. “Eu fiquei doidinha com aquilo, aquela mulher ficou na minha cabeça, porque não tinha o resto do processo”.
Valéria reparou que era uma carta escrita de próprio punho pela mulher incriminada, algo raro para a época. “Era uma carta da própria Isabel Maria, se defendendo das acusações e com muita ironia, e é claramente uma carta escrita pela mulher, porque é uma letra completamente diferente”. Os homens alfabetizados normalmente possuíam uma caligrafia padrão, assim como um sistema de abreviaturas, próprias para a escrita de documentos oficiais.
Neste contexto de transformações sociais, as mulheres brancas se viam em uma situação complicada. De acordo com a lei portuguesa, a herança deveria ser dividida igualmente entre todos os filhos, sejam homens ou mulheres. “Ora, mas quem tinha um enorme engenho não queria que a terra fosse dividida”.
“Do ponto de vista do colono, sobravam mulheres brancas; do ponto de vista da Coroa, faltavam”. Embora os grandes proprietários tivessem muitos filhos, permitiam que poucas de suas filhas se casassem com homens de outros engenhos ou com alguém com quem fosse interessante estabelecer uma parceria. Para a Coroa, que precisava manter o controle sobre o território ocupado, era preciso que a população que se identificava como portuguesa se reproduzisse. Por isso, a existência de conventos e instituições religiosas de recolhimento feminino eram sempre cercadas de conflitos de interesses. Enquanto as autoridades se preocupavam em aumentar o número de casamentos, muitas das mulheres brancas que, da perspectiva do homem detentor de herança, sobravam, eram presas em conventos, “com voto solene de pobreza, que implicava renúncia à herança”. Valéria juntou a carta de Isabel Maria com esse contexto social da época e criou sua história.
“Quero narrar a v. Exa. o meu modo de vida. Faço oração tal pela manhã e à noite. Confissão de vida casta entre me tendo alguma de Frei Antônio das Chagas e Frei Manoel dos Santos e mestre da vida. E não me aparto de combate espiritual com o mais que o divino Espírito Santo me ajuda. Se este santo exercício a chuva do céu nas vilas faz lama neste Retiro em que me acho, poderá dar fruto ou se a minha dita acha-se mais operários que julgadores e segadores não haveria tanta cizânia semeada por quem talvez tem obrigação de atalhar e nem seria tão dificultoso o confessar – se e comungar a meu de quem para se aproveitar das fontes que nosso Jesus deixou na sua Igreja anda com medos como quem vive em terra de hereges (…). Fio, faço renda, lavo, coso e cozinho por não querer admitir uma escrava de portas dentro donde tem nascido tantas ruínas e não hei de despedir de mim quem me busca para viver com honra fugindo das garras do demônio, mas antes, tomara remediar a todas que há no universo eminentes aos perigos que nunca mais se podem reparar e violadas. Vivo de esmolas e das minas gerais é o maior socorro que tenho, porque estas em que me acho só tem abundância em redor de minerais. Não repare v. Exa. no estilo com que me expresso porque a condição mulherio tem seus desvarios”
(Trecho da carta de Isabel Maria presente no artigo da Profa. Dra. Ana Cristina Pereira Lage, publicado na Revista de História e Historiografia da Educação em abril de 2019).
O sentimento de dívida
Por causa da incompletude dos documentos encontrados, ficou sem saber qual foi o destino de Isabel Maria. A pesquisadora teve a intenção de escrever mais sobre a vida da regente da casa de mulheres, como historiadora mesmo, pois neste tempo ainda nem sonhava em publicar seus textos de ficção. No entanto, acabou se dedicando a outras tarefas, deixando a pesquisa sobre Isabel para lá. Só por volta do ano de 2009 que teve a ideia de escrever sobre, desta vez, no campo da ficção. “Fiquei com um sentimento de dívida para com essa mulher”.
Os documentos incompletos do processo foram o ponto de partida para a escrita de seu novo livro. “Não é uma biografia da verdadeira Isabel Maria, é uma mulher que eu inventei inspirada naquela mulher, como uma prestação de contas”. Para isso, escolheu a forma de um romance epistolar em que a própria protagonista narra sua história. O grande desafio foi desenvolver uma linguagem “plausível no século XVIII e legível no século XXI”. O uso de cada palavra precisava ser pensada, pesquisada e conferida para garantir que se seu uso já era corrente no período em que viveu a personagem principal.
O projeto foi se arrastando conforme as dificuldades se acumulavam. A primeira delas é a falta de tempo para se dedicar à escrita. Apesar de ser uma escritora premiadíssima, Valéria precisa trabalhar como tradutora para se manter, afinal, “não é com direito autoral que se paga nada”. Quanto a isso, não poupa palavras para criticar a situação dos autores brasileiros: “Com direito autoral eu não ganho um salário mínimo por mês [risos], tenho que ficar correndo, traduzindo livro, vendendo eu mesma meus livros, ganho mais como camelô de meus livros do que como autora”. Toda vez que vai a algum evento literário, sai de casa com a sua malinha e sua máquina de cartão. “O escritor, na sua situação geral, é um cozinheiro de um restaurante de luxo que não tem salário, só recebe a gorjeta do freguês […] só se considera literatura o que é feito assim, com o selo da editora”.
Por causa de sua situação financeira, trabalhava algumas horas no livro, quando conseguia e, em seguida, passava dias sem se dedicar. “Não passo os dias como aquele escritor, aquele que foi professor universitário e se aposentou [riso], que tem um escritório sagrado, ele não tem que fazer nada”. Ter um teto todo seu para escrever sem ser incomodada ainda é uma exclusividade concedida a poucas pessoas, entre elas, quase nenhuma mulher.
O ritmo do trabalho também é mais lento por causa das dificuldades para enxergar. “Meu olho esquerdo é cego e o direito tá com uma catarata que é complicada de operar”. Concluiu o livro por causa de uma bolsa que recebeu do programa Rumos Itaú Cultural. Se não fosse essa ajuda, “já teria desistido”.
Hoje tem todos os documentos do caso de Isabel Maria, digitalizados, no computador. No entanto, “ler é exigente pros olhos”. Além disso, ainda há a dificuldade da dedicação, pois é preciso “tempo e lazer” para ler os documentos, coisa que não tem sobrado para a ela.
Maria Valéria Rezende e a motivação de sua escrita
Carta à Rainha Louca toca a questão da condição de vida das mulheres brancas no Brasil do século XVIII, tema que geralmente não possui destaque nas discussões da sociedade. Seus desdobramentos estão presentes na vida cotidiana; no entanto, pouco se fala sobre esta gênese. Assim como as outras obras de Valéria, este seu último livro trata do que é invisível e que, ao mesmo tempo, precisa vir à tona.
“Por eu ter uma trajetória de vida que não é comum à maioria das mulheres, vejo coisas que os outros não vêem”. Sua atuação como educadora, sempre presente em comunidades populares, em contato direto com as pessoas, ouvindo suas histórias e adotando sua forma de ver a vida, andando “pelo meio do mundo”, a ajudou a construir uma compreensão singular da sociedade em que vivemos, com o privilégio de uma formação acadêmica. “Escrevo para dar testemunho, como quem diz: ‘olhem pra isso’, pra população leitora que, em geral, não olha para os invisíveis”. Para captar o que ainda não foi notado é preciso sensibilidade. “Quem é ficcionista ou poeta o é justamente porque percebe uma coisa no ar, mas não sabe explicar o que é, aí ele inventa pra poder dizer o que não dá pra dizer com palavras exatas”.
Maria Valéria sempre escreveu ficção, até para seu trabalho como educadora popular. Ser escritora nunca foi um plano de vida, aconteceu. Costumava escrever contos e presentear os amigos em datas comemorativas. “Eu pegava alguma história que eu já tinha escrito ou eu escrevia uma, datilografava direitinho, desenhava uma capa e dava para a pessoa”. Nem sempre eram textos inéditos: “muitas vezes eu escrevia o mesmo texto especialmente para várias pessoas [risos]”. E arremata: “Para você ver como a ficção está misturada na vida”.
Um dia, um amigo seu, escritor, levou o texto que ganhou de presente até um editor. Anos depois, o homem telefonou e “aí começou a pressionar pra eu começar a publicar livro”. Foi questão de água mole em pedra dura.
Embuste e viagem fake para a Angola
Amante da boa conversa e adepta do diálogo como ferramenta pedagógica, Valéria se inquieta com os hábitos de isolamento praticados pelas pessoas atualmente. “Nós estamos vivendo uma vida de doido, porque o ideal hoje é você ser cada vez mais solitário”.
“Tem uma camada de conversa que por si só já é um embuste”. Às vezes percorre a sua linha do tempo e reflete sobre o que as pessoas querem que os outros pensem delas. E essa reputação virtual toma uma boa parte de nosso tempo: “Não basta você real com sua personalidade real, você tem que virar também personagem, e a personagem pública não corresponde exatamente com a pessoa”.
Mesmo buscando a autenticidade nas redes, às vezes as coisas saem do controle de Valéria. Certa vez, quando deu uma entrevista, comentou com o jornalista que passou um tempo na Argélia. O profissional cometeu um engano, não se sabe se porque ele não entendeu ou porque não anotou. A questão é que achou mais provável que ela tivesse ido para a Angola. E assim foi publicado e replicado infinitamente. “O único jeito de eu desfazer essa mentira é ir para a Angola, passar uns dias lá, porque apagar textos da internet, dos jornais, é impossível”, brinca.
Já aconteceu de a chamarem de ex-freira em um jornal por aí. O jornalista não tinha evidências, apenas convicções. E mesmo assim não apurou a informação com a própria entrevistada. Ela acredita que o motivo da confusão é o pensamento simplista de que uma mulher como ela não poderia ser uma freira. “O pessoal acha que freira é uma mulher boboquinha, que não arrumou marido e se trancou num convento” [risos]. “E não é nada disso, pelo contrário, as freiras foram, durante muito tempo, as únicas mulheres letradas, tinham uma liberdade intelectual muito maior do que as que estavam sob o domínio de algum homem”. E, no final das contas, acredita que o fato de ser freira contribuiu para a sua fama: “é uma esquisitice, uma freira que escreve ficção”.
Regionalista não!
Apesar dos deslizes da imprensa, só tem uma coisa que pode tirar Valéria de sua paz: o rótulo de escritora regionalista. Alguém ou alguns poderosos fincaram o eixo da literatura em um lugar específico do país, os grandes centros urbanos, principalmente onde habita a classe média, e declararam que tudo o que está em volta é periférico. Isso Valéria não releva. Comentei sobre uma de minhas metáforas preferidas: existe um jardineiro da literatura e ele determina quais são as ervas daninhas: “E elas não obedecem”, completa ela imediatamente.
Regionalista, para Valéria, é xingamento. “Uma coisa foi o movimento dos anos 1930, encabeçado pelo Gilberto Freire, e que depois os escritores também entraram nessa, isso é uma coisa, um momento histórico lá em que eles tinham um certo sentido, agora, hoje dizer que meu livro era regionalista, tá me xingando, tá me diminuindo”. Tem muito escritores que se trancam em sua kitnet em São Paulo com dois ou três livros para escrever sobre “um eu abstrato que não tá em lugar nenhum” e isso não é chamado de literatura de condomínio, não é mesmo? Os critérios que definem uma “literatura universal” são criados por quem?
Biografia é tudo mentira
Além do assunto do regionalismo, outro que torna o discurso de Maria Valéria Rezende acalorado, com direito a um cigarro acendido durante sua fala, é a autobiografia. Pelo jeito, ela tem lidado com as perguntas sobre isso há um tempo e a resposta é na lata: “Que biografia!”. Narrar sua própria vida parece algo fora de cogitação.
Primeiro porque ela não gosta de ler esse tipo de livro. “Biografia é tudo mentira, tipo o Facebook”. As poucas vezes em que arriscou ler uma autobiografia foram as escritas por gente que conheceu e, talvez por isso, tenha ficado com a sensação de que há mais de ficção ali do que se pode admitir. “Ninguém de nós tem a memória exata do que aconteceu, inclusive, porque a gente não vê a realidade toda”.
Cada um esquece o que lhe convém e acredita na narrativa que contou a si mesmo sobre o que viveu. Algo muito fácil de se notar quando, por exemplo, reúnem-se testemunhos de pessoas diferentes sobre um mesmo fato: “cada um tava lá e viu de uma coisa diferente”. “Você já reparou quantas vezes nas conversas a gente ouve: ‘Fulana, parece mentira, mas…’, a vida parece mentira”.
Não pude deixar de perguntar: Mas e se alguém quiser escrever sua biografia? “Ah, tem gente que vai se meter, mas não sabe do padre nosso a metade”.
Para Valéria, qualquer tentativa de retratar a realidade acaba caindo na ficção, de uma forma ou de outra. Até em uma reportagem ou em uma pesquisa científica, por maior que seja o rigor do profissional com seu trabalho, a ficção acaba entrando. “Você pega os retalhos de realidade que conhece e a partir daí você faz a colcha de retalhos que é a ficção, a gente faz o crochezinho ali no meio pra juntar, arruma os retalhos conforme as cores, pra dar uma harmonia e pronto”.
Pode ser que, assim como mudou de ideia em relação a fazer ficção, Valéria decida escrever sobre sua própria experiência de vida. Com as devidas pitadas de invenção, não há dúvidas.
Sai da kitnet e leia muito
Quando a conversa estava no fim, pedi para Maria Valéria Rezende mandar um recado para a nova geração de escritoras e escritores: “Sai da kitnet e leia muito. A gente pode ler em qualquer lugar, eu por exemplo, sou adepta da leitura digital, ando com o tablet na bolsa e qualquer sala de espera, ponto de ônibus, qualquer canto que eu tenha que esperar que aprontem meu café e meu sanduíche, tô lendo, então, dizer que não tem tempo para ler, me desculpe, é leseira, eu carrego uma biblioteca de milhares de livros na minha bolsa. Mas isso não basta, tem que ler o mundo, sai do seu mundo, porque a gente nasce numa situação muito restrita, saia da sua zona de conforto, vá conversar com outra gente, com outro mundo, vá trabalhar em alguma coisa outra, aliás, nem acho que é bom pro escritor ficar só no meio de livros e literatura, porque ele fica entre ele mesmo e o que os outros já escreveram, existe mais coisa no mundo pra ser escrita do que só isso [pausa]. O conselho que eu dou é esse: saia da kitnet, e não tenha pressa, não tenha pressa, e tenha outro serviço para ganhar a vida, porque com direito autoral só Jorge Amado e Paulo Coelho [risos]”.
Respostas de 3
Parabens. Mari! Você achou até o texto de Isabel Maria!!!
Eu que agradeço pela oportunidade, Valéria! Aprendi muito com essa entrevista ♥
Ainda não li nenhum livro da Valéria, mas vi uma entrevista dela na TV Senado e procurarei em breve ler uma obra sua. Uma grande intelectual como ela deveria ser apresentada a todos os estudantes, para que se quebrem preconceitos. Quantos de nós imaginariam uma freira com tanta vivência?