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1984 no cinema: a versão de Michael Anderson

Falar sobre livros adaptados para as telonas é sempre um desafio. Este é ainda maior quando se trata de um dos livros mais famosos e discutidos: 1984, de George Orwell, publicado em 1949. A obra já teve diversas versões para o cinema, e escolhi fazer uma breve análise da primeira adaptação do romance*, o filme 1984, de Michael Anderson**.

1984: um filme que reverbera os medos de 1955

Lançada em 1956***, a película é “filha” de seu tempo. Foi gravada na Inglaterra em 1955, que ainda se recuperava dos traumas da Segunda Guerra Mundial, assim como muitos países europeus. Além dos destroços da grande batalha, começavam a vir à tona as atrocidades do nazismo, expressão máxima do totalitarismo; o comunismo soviético se expandia pelo leste europeu e, com ele, novos ataques às liberdades individuais por meio do sistema de vigilância monitorado pela Stasi; e a ameaça de um apocalipse atômico ganhava cada vez mais força. Nos Estados Unidos, os artistas e intelectuais “simpáticos ao comunismo” eram perseguidos em nome da “defesa da liberdade”. É neste contexto de confusão e medo que o livro foi lido e adaptado, por isso o filme capta muito bem a paranoia desta época, já mostrando nos primeiros minutos uma sequência de explosões de bombas atômicas, terror que iria marcar as décadas seguintes.

Cartaz do filme 1984.

Evidentemente, a adaptação tomou algumas “licenças poéticas” e alguns nomes foram modificados. O’Brien é denominado como O’Connor, e o inimigo do partido, Emmanuel Goldstein, é chamado de Kalador. Por outro lado, a repressão e censura da época vetaram as cenas de sexo entre Winston Smith e Julia, que seriam essenciais para evidenciar a repressão sexual promovida pelo Partido. As cenas de tortura também foram suavizadas e passam muito longe da violência e angústia que percebemos ao longo da leitura.

A figura de Winston e sua sagacidade, interpretada por Edmond O’Brien, é bem diferente da imagem que construí do protagonista do livro. Julia, de Jan Sterling, também ganha outras características, talvez mais doces e menos transgressoras daquelas da mulher criada por Orwell. Essa doçura passa, igualmente, para o relacionamento entre Winston e Julia, algo que não percebi pela leitura.

Porém, a filmagem em preto e branco, com ambientes mais fechados e padronizados, passou a mesma sensação claustrofóbica e mórbida que marcou a minha experiência de leitura da obra orwelliana. Muitas das cenas, especialmente no início, me lembraram das imagens e vídeos de cidades europeias destruídas após a Segunda Guerra, novamente um lembrete dos acontecimentos e dos choques recentes.

Desta forma, o filme não dá conta do conteúdo do livro. Isso parece óbvio e é claro que, na maioria esmagadora das vezes, o livro será “melhor” que o filme. Mas é importante fazer esse comentário, pois muitas e muitos de nós ainda pensamos que essas duas mídias podem ser “iguais” e ficamos completamente decepcionados ao vermos uma adaptação, que foi feita em outro momento, em outro contexto, com outros interesses.

Eis uma outra visão sobre o filme 1984, do professor e crítico de cinema, Arthur Knight:

“Visualização sombriamente plausível de Orwell de um mundo totalitário por vir, o filme de Michael Anderson alcançou a extraordinária façanha de manter ligadas a história e o tema do original, sem sugerir sua ironia mordaz ou intensa indignação moral. Orwell escreveu seu livro como um aviso. Michael Anderson dirige o filme como um fato consumado, jogando-o em uma nota de resignação e desespero que deixa o espectador sem a menor esperança para a salvação do homem e do espírito humano. Significativamente, qualquer menção aos ‘proles’, símbolo da continuidade de vida em Orwell, foi eliminada. Da mesma forma, as cenas de amor, das quais Orwell havia transformado em gesto último de desafio num mundo conformista, aqui têm uma cara apática, ausente de paixão, que faz com que a interrupção pela ‘polícia do pensamento’ torne-se quase um alívio.”

(Arthur Knight, “The Saturday Review”, 2 de junho de 1956).

O futuro presente de 1984

O filme mostra um futuro próximo, que poderia vir a se concretizar caso a liberdade não fosse respeitada. Naquele momento, o comunismo parecia a maior ameaça à sociedade e seus direitos fundamentais. Hoje, novamente assistimos ao avanço de governos que flertam com o totalitarismo e que culpam o comunismo por males diversos. 1984, através do livro e suas adaptações cinematográficas, continua nos alertando para um futuro próximo. Ou para um presente que ainda não conseguimos enxergar.

“Ao final do filme, o triste herói grita, cada vez mais alegremente: ‘Viva o Big Brother’, enquanto no olho de sua antiga companheira brilha uma lágrima, derradeiro vestígio de resistência. ‘1984’ é bastante fiel ao espírito do livro de Orwell e deve ser considerado não comente como um panfleto antistalinista, mas como uma crítica feroz a todo sistema repressivo e alienante, já que seus alvos são o fanatismo patriótico, a hierarquia e o culto ao chefe, à exploração, à submissão e à passividade.” (Jean-Paul Nail, “L’Écran Fantastique”, dezembro de 1970).

Ainda espero assistir à versão de Radford, até para fazer uma comparação com o filme que acabei de ver. E você? Já viu alguma das adaptações do livro? O que achou dos comentários acima? Se alguém tiver uma observação diferente, pode compartilhar comigo!

Ficha técnica do filme 1984

Título original: 1984
Ano: 1956
País: Inglaterra
Direção: Michael Anderson
Roteiro: Ralph Bettison e William Templeton, baseado no livro homônimo de G. Orwell
Produção: N. Peter Rathvon e Ralph Bettison
Elenco: Edmond O’Brien, Michael Redgrave, Jan Sterling, David Kossoff, Mervyn Johns, Donald Pleasence, Carol Wolveridge, Ernest Clark, Patrick Allen, Kenneth Griffith, John Vernon.

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* O livro de Orwell recebeu uma adaptação anterior, mas para a TV, dirigida por Rudolph Cartier em 1954 para o BBC.  A outra adaptação para o cinema foi a versão homônima lançada em 1984, dirigida por Michael Radford e com John Hurt e Richard Burton no elenco. Há também uma versão do livro em formato de ópera.

** Michael Anderson, nascido em 1920, ficou conhecido por dirigir filmes de guerra e de aventura/ficção científica, como Fuga do Século 23 (1976) e Orca, a Baleia Assassina (1977), assim como adaptações de grandes clássicos da literatura. Além do filme 1984, dirigiu A Volta ao Mundo em 80 dias (1956), adaptado da obra de Julio Verne (1828-1905) e vencedor de cinco Oscars.

*** Para este texto, utilizei o DVD lançado em 2013 na Coleção Folha “Grandes Livros no Cinema” número 03.

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Leia mais:

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