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Um médico, um monstro: Stevenson e a perversão do homem na subversão gótica

Nesta coluna, iremos trazer vários pontos de vista sobre uma mesma leitura. Para iniciar, vamos debater o livro O médico e o monstro

A alegria da leitura compartilhada

Li O médico e o monstro (ou O estranho caso de Dr Jekyll e Mr Hyde, 1886) de Robert Stevenson, recentemente, por indicação de uma amiga que, assim como eu, tem se dedicado à literatura e a ler acompanhada. Clubes de leitura não são recentes. Em Sorocaba, em Franca, em Curitiba, em São Paulo, em Londres, várias pessoas se reúnem para ler as mesmas obras e as discutir com ou sem mediação. A leitura compartilhada traz inúmeros benefícios ao leitor. Um benefício óbvio é a expansão do conhecimento e entendimento da obra, quando esta é lida a partir de diferentes perspectivas, panos de fundo, trajetórias individuais. Outro benefício é fazer com que possamos partilhar de sonhos, inquietações, angústias e, assim, diminuirmos um pouco a distância, geográfica ou mental, que se coloca entre nós e os outros e nos torna mais solitários.

Desde que me mudei para Londres, tentei alguns clubes de leitura sem muito sucesso. Ou as obras não me despertavam um interesse maior do que as que já constavam da lista infinita que, todo ano, eu mesma me imponho e não cumpro; ou a dinâmica dos clubes me parecia pouco atraente e não acrescentava muito naquilo que eu já sabia ou havia considerado sobre a obra. Foi por isso que resolvi tentar reunir pessoas interessadas em conversar sobre algumas obras literárias em um clube do livro virtual.

E em decorrência do Halloween, nossa intenção era passar outubro acompanhados de um romance gótico ou de terror. As opções eram boas: Stephen King, Peter Ackroyd, Caitlin Doughty, e até Jane Austen com sua heroína satírica apaixonada por castelos mal assombrados e mocinhas em perigo. Mas escolhemos a obra clássica de Stevenson como nossa celebração do Halloween. Tenho de confessar que essa não era minha opção favorita e ainda quero ver o que Ackroyd fez com o Frankenstein de Shelley. Mas como em alguns espaços ainda é possível respeitar o desejo da maioria e os acordos estipulados, me aventurei por essas ruas sombrias e obscuras de uma Londres que escondia segredos terríveis.

O escritor escocês Robert Louis Stevenson, autor de “O médico e o monstro” – Getty Images

Um médico, um monstro

Era uma noite fria, insólita, em que a pouca iluminação das ruas do Soho londrino aterrorizava até os mais destemidos. Os sussurros e rumores de algo fora do comum chegavam aos ouvidos de um advogado de respeito, frequentador das altas classes, lançando-o em angústias e suspeitas inimagináveis. Assim como eu, o Sr. Utterson era um homem de poucos amigos. Aqueles que ainda permaneciam por perto a despeito de sua sisudez eram conhecidos de muito tempo. Mesmo frequentando festas e jantares, Sr. Utterson não fazia novas amizades, e passava boa parte do tempo entre os papéis e testamentos guardados no cofre de seu escritório.

Foi por meio de um desses antigos amigos que lhe chegou a notícia de um estranho incidente. Em uma noite fria, insólita, em que a pouca iluminação das ruas do Soho londrino aterrorizava até os mais destemidos, um homem de feições grotescas e nauseantes teria pisoteado, sem pudores, uma criança, deixando-a aos gritos no meio-fio. E ela ali teria permanecido sofrendo as dores dessa intromissão, não fosse a pressão dos transeuntes que o obrigaram a restituir a dignidade à família com um cheque assinado por um respeitado médico, Dr Jekyll, amigo e cliente de Utterson. A partir de então, teria início a saga de Hide and Seek, a brincadeira que chamamos de esconde-esconde, em que um se propõe a encontrar aquele que não quer ser encontrado. A alusão a esse jogo é explícita no nome atribuído ao personagem que se esconde, Mr. Hyde, e é retomada pelo próprio advogado que dá a si a tarefa de desvendar esse segredo e torná-lo público.

Essa forma narrativa que privilegia a perspectiva do advogado e não a dos personagens centrais – Jekyll e Hyde – foi algo inesperado. Quando abri o livro, já sabendo o que viria pela frente, me surpreendi com um retrato do Sr. Utterson e não com uma fala de Jekyll, ou sobre Jekyll, ou a apresentação de seus experimentos científicos. Vejam bem: eu havia lido Frankenstein (1818) no ano passado. E ali, o que encontramos é um cientista engajado nas descobertas científicas de seu tempo, que empurraram os limites da natureza até o impensável. Ainda que a obra da Sra. Shelley tenha início com cartas escritas por um explorador das terras polares, que servem para ambientar o leitor para a existência desses duplos que se perseguem, o romance apresenta um relato minucioso da trajetória do Dr. Victor Frankenstein até e durante a criação de seu monstro demasiado humano.

Em Dr. Jekyll e Mr. Hyde, em contrapartida, tomamos conhecimento da existência dos duplos quase que por um acaso, por um sussurro de pé de ouvido, por um incidente infeliz que contou com testemunhas conhecidas. Portanto, desde o início da obra, somos apresentados àquele que se esconde, seja pelo nome que possui, seja pela deformidade que define sua materialidade. Mas é só ao final da obra que a monstruosidade de uma relação inquietante se revela pela letra dos próprios envolvidos, em cartas deixadas como forma de um testemunho post-mortem, ou de uma confissão destituída de arrependimentos genuínos.

Robert Stevenson e a perversão do homem na subversão gótica

E aqui cabe mais uma confissão: ao concluir a leitura, me senti incomodada. Não conseguia resolver se havia gostado do livro ou não. Me peguei pensando que deveria ter realmente lido O livro de anotações do Dr. Frankenstein, de Peter Ackroyd, ao invés de me dedicar a uma obra cujo enredo eu já conhecia, mas que esperava que fosse insuperável no aprofundamento da discussão de temas que atormentam a alma humana desde, no mínimo, o século V, quando Agostinho de Hipona travou uma disputa com maniqueus sobre a origem do Mal: seria o Mal uma substância, um ser em si, ou seria ele uma perversão da vontade, uma ausência ocupada por um não-ser que só poderia estar na alma humana quando vista em relação ao Bem que ali deveria ser e estar, mas não era ou estava. Como compreender aqueles impulsos mais nefastos, malignos que nos habitam? Como explicar a existência de um mundo povoado por horrores, por violência, por mortes desnecessárias, por pessoas que agem para destruir, matar, impor constrangimentos? Somos nós próprios duplos? Se sim, o que faz com que uns refreiem os próprios impulsos e outros nem tanto ou nada? Se Deus está morto, tudo é realmente permitido? Mas e se está vivo? Esqueceu-se de nós após nos lançar em um mar de tormentos?

As falas de Dr. Jekyll ecoavam na minha cabeça, e assim como ele, me atormentava reconhecer que o homem, talvez, verdadeiramente, não seja uno, mas duplo. Mais ainda, ele admitia que:

“Foi no aspecto moral, na minha própria pessoa, que eu aprendi a reconhecer a completa e primitiva dualidade do homem; vi que das duas naturezas que duelavam no campo da minha consciência, mesmo que eu pudesse, com razão, ser dito uma ou outra, era simplesmente porque eu era radicalmente ambas”

(* tradução livre baseada na edição de O médico e o monstro da Penguim Books, versão Kindle, p. 49).

Também me senti frustrada por achar que o livro não era assustador o suficiente para ser colocado ao lado de Bram Stoker e Edgar Allan Poe. Lembro que tive pesadelos todas as noites quando, há anos atrás, escolhi Drácula como leitura de cabeceira; ou o frio na espinha que a obra de Stephen King e Poe me davam a cada linha. É desnecessário dizer que não consegui concluir nem uma, nem outras. Com a saga de Dr. Jekyll e Mr. Hyde, entretanto, não só fiz a leitura de um fôlego só, como ansiava por tormentos noturnos que nunca chegavam. Mas descobri que o horror não precisa ser explicitado para ser horror. Ele pode se insinuar por espaços e lugares insuspeitos. Ele pode estar justamente na coragem de se assumir duplo e de se permitir colocar em prática, tornar ação, aquilo que de um ponto de vista social e moral deveria ser contido, escondido, reprimido. Saber-se capaz de práticas criminosas, de práticas que ferem outros para obtenção de puro prazer, pode ser e é assustador.

Foi em outra noite fria de Londres, ao partilhar a leitura com a amiga que havia sugerido a leitura de Stevenson, que novos aspectos importantes e impressionantes de O médico e o monstro foram revelados e me fizeram gostar um pouco mais dela. Portanto, as ideias que seguem não podem ser consideradas totalmente próprias, ou apenas minhas, pois são fruto de um saudável e prazeroso debate de ideias.

As descobertas de uma leitura compartilhada

Voltemos à questão do romance gótico. Um tema que sempre me interessou é o nome que damos a este tipo de literatura. Gótico era um dos estilos da arquitetura medieval usado na construção de suas catedrais. O século de popularização e reconhecimento da importância do romance na Inglaterra coincide com o que foi chamado de neo-gótico. Várias igrejas passaram a ser construídas nesse estilo arquitetônico em uma retomada dos tempos medievais, a ponto de muitas vezes acharmos que estamos diante de uma construção antiga e nos surpreendemos com a inscrição de que se trata de algo do século XIX. No caso desses romances, desde o seu surgimento no início do século XVIII, percebe-se a ingerência medieval nos espaços de atuação das personagens: geralmente castelos em ruínas, mal assombrados, onde prevalece o obscuro, a escuridão que resguarda seu interior da luz do exterior. Ou, então, antigas abadias convertidas em residências que abrigam pessoas de caráter duvidoso.

Leia mais: O que é o romance gótico?

Entretanto, ao final do século XIX, o gótico parece ter se instalado nos centros urbanos, no coração do Império Britânico, para além das novas fachadas de catedrais. No já citado Drácula, escrito em 1897, Jonathan Harker, um advogado que partiu rumo ao Leste para negociar lotes de terras de Londres, vê-se às voltas com eventos sobrenaturais inexplicáveis depois de empreender uma viagem à Transilvânia e se encontrar com um conde sanguinário, habitante de um castelo assombrado por um passado de guerra e violência. A grande cidade está posta no romance, mas o mal que a assola vem de fora, de regiões distantes submersas em superstições quase atemporais.

Talvez Robert Stevenson, com seu O médico e o monstro, tenha sido um dos primeiros a colocar o terror como exclusivo e intrínseco ao centro da capital imperial, sem recorrer ao sobrenatural, a castelos, a igrejas ou a abadias em ruínas. A ruína que encontramos na obra é interna a um homem duplicado que habita uma cidade também dividida em espaços de riqueza, glamour e civilidade; e espaços relegados à pobreza em que se escondem a barbárie e o mais terrível que o humano pode produzir com a ajuda de uma ciência que manipula elementos da natureza para benefício próprio. O monstruoso está naquilo que não condiz com as normas públicas e sociais e tem como campo de exploração a própria cidade.

Capa do livro “O médico e o monstro”.

Ao compararmos o que foi escrito nas introduções da edição inglesa e brasileira, outro aspecto de subversão do gótico saltou aos nossos olhos. Explico. Geralmente, nessas obras, encontramos uma heroína que precisa ser resgatada, por um homem moralmente correto, das garras de um homem nefasto ou sedutor. Coloca-se em tensão as funções dos dois gêneros e os papéis que podem desempenhar na sociedade. Não nos esqueçamos de que o grande sofrimento da criatura do Dr. Frankenstein é a impossibilidade de ter criado para si uma Eva, após ver a relação de Victor com seu amor de infância. Também em Drácula existe um triângulo amoroso posto no centro do romance.

Tal situação não aparece em O médico e o monstro. O romance é povoado por figuras masculinas. Somente duas mulheres aparecem na obra: a empregada com maus modos de um homem que se esconde; e uma mulher apresentada como histérica, que desmaia ao testemunhar a prática de um crime ocorrido sob sua janela. Não há donzela a ser salva das investidas de um impostor. Inclusive, há indícios na obra de que a heterodoxia de Dr. Jekyll iria além de suas experimentações científicas, e isso coloca um problema curioso para considerar as obras góticas produzidas durante o reinado da rainha Victoria, um período considerado de grande expansão econômica e de estabilidade política: por que usar o romance gótico para retratar a sociedade da época? Por que recorrer ao horror como forma de expressão quando o que se tinha era, supostamente, progresso?

Não tenho uma resposta, mas tenho uma ideia. Sabemos que dentro de toda civilização existe a barbárie, ou, dito de outra forma, que a civilização produz sua própria barbárie, assim como a riqueza lança à periferia seus empobrecidos. É também sobre esta realidade que Robert Stevenson está falando quando se lança ao tema do Bem e do Mal, ou do homem duplicado. E talvez possamos considerar que ele faça isso a partir de uma perspectiva marginal, ou subversiva, seja ao possivelmente retratar relações homoafetivas de homens que se escondem nos subúrbios do Soho londrino, seja por ser um escritor escocês que, embora com recursos, se criou nas periferias do Império.

Não é de se estranhar, então, que também os outros dois autores mencionados nesta breve exposição estivessem na marginalidade social: Bram Stoker, um escritor irlandês, ao que tudo indica possivelmente flertava com a homossexualidade e poderia ser encontrado nos círculos literários de Oscar Wilde, autor cujo O retrato de Dorian Gray (1890) também tem por personagem um homem desdobrado entre a aparência que mantinha em sociedade e o reflexo que resguardava, na privacidade, aquilo que não poderia se dar a ver. Mary Shelley, por outro lado, precisou recorrer ao anonimato para publicar seu livro inaugural pelo fato de ser mulher, e era considerada uma pária social pelo concubinato que assumiu com o poeta Percy Shelley, um homem casado, o que os obrigou a viver uma vida itinerante e quase clandestina.

De fato, a civilização produz sua barbárie e seus marginais. E são muitas vezes estes marginais que, justamente por estarem à margem, conseguem expor com beleza e precisão as fissuras de sua própria civilização, transformando-as em clássicos que extrapolam suas sociedades e seguem assombrando nossos sonhos quando, como diz minha amiga contemporaneísta, a razão adormece.

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Imagem de capa: cena do filme “Dr. Jekyll and Mr. Hyde”, de John S. Robertson, EUA, 1920, 85 min., 35mm.

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