Casimiro de Abreu é o poeta da saudade e da juventude eterna. Nascido no Rio de Janeiro em 1839, escreveu boa parte de sua obra em Portugal e deixou, mesmo com uma vida breve, versos que marcaram o Romantismo brasileiro. Em suas poesias, encontramos a pureza da infância, a nostalgia do tempo que não volta e a melancolia do amor idealizado — temas que continuam a tocar leitores até hoje.
Reunimos aqui as 10 poesias mais emocionantes de Casimiro de Abreu, todas acompanhadas de breves comentários que revelam o lirismo e a sensibilidade de um autor que transformou lembranças em arte. Ler Casimiro é revisitar o Brasil do século XIX, mas também olhar para dentro: cada verso é um espelho onde o passado se reconhece.

Sobre o livro “As Primaveras”, de Casimiro de Abreu.
As Primaveras, único livro publicado em vida por Casimiro de Abreu, reúne os poemas mais marcantes do Romantismo brasileiro — versos sobre juventude, amor, inocência e saudade.
Ou leia gratuitamente no site do Domínio Público.
1. O que é – Simpatia (Casimiro de Abreu)
A uma menina.
Simpatia — é o sentimento
Que nasce num só momento,
Sincero, no coração;
São dois olhares acesos
Bem juntos, unidos, presos
Numa mágica atração.
Simpatia — são dois galhos
Banhados de bons orvalhos
Nas mangueiras do jardim;
Bem longe às vezes nascidos,
Mas que se juntam crescidos
E que se abraçam por fim.
São duas almas bem gêmeas
Que riem no mesmo riso,
Que choram nos mesmos ais;
São vozes de dois amantes,
Duas liras semelhantes,
Ou dois poemas iguais.
Simpatia — meu anjinho,
É o canto do passarinho,
É a doce aroma da flor;
São nuvens dum céu d’agosto,
É o que m’inspira teu rosto…
— Simpatia — é — quase amor!
Entrelinhas:
Neste poema, Casimiro de Abreu traduz a simpatia como uma forma de encantamento súbito — o instante em que dois corações se reconhecem antes mesmo do amor amadurecer. É um texto de inocência e descoberta, em que o poeta compara esse sentimento às forças da natureza: flores, galhos, orvalhos, passarinhos. Tudo vibra em harmonia, como se o universo conspirasse para unir duas almas afins.
“Simpatia” é o prelúdio do amor, o pressentimento da ternura. Casimiro fala da emoção nascente com doçura quase infantil, revelando o olhar de quem acredita que sentir é o maior milagre da existência.
2. Perfumes e amor
Na Primeira Folha Dum Álbum.
A flor mimosa que abrilhanta o prado
Ao sol nascente vai pedir fulgor;
E o sol, abrindo da açucena as folhas,
Dá-lhe perfumes — e não nega amor.
Eu que não tenho, como o sol, seus raios,
Embora sinta nesta fronte ardor,
Sempre quisera ao encetar teu álbum
Dar-lhe perfumes — desejar-lhe amor.
Meu Deus! nas folhas deste livro puro
Não manche o pranto da inocência o alvor,
Mas cada canto que cair dos lábios
Traga perfumes — e murmure amor.
Aqui se junte, qual num ramo santo,
Do nardo o aroma e da camélia a cor,
E possa a virgem, percorrendo as folhas,
Sorver perfumes — respirar amor.
Encontre a bela, caprichosa sempre,
Nos ternos hinos d’infantil frescor
Entrelaçados na grinalda amiga
Doces perfumes — e celeste amor.
Talvez que diga, recordando tarde
O doce anelo do feliz cantor:
— “Meu Deus! nas folhas do meu livro d’alma
Sobram perfumes — e não falta amor!”
Entrelinhas:
Neste poema, Casimiro de Abreu associa a pureza e o frescor das flores ao sentimento amoroso que deseja oferecer — um amor que não mancha, mas perfuma, que não pesa, mas inspira. Escrito como uma dedicatória (“Na Primeira Folha Dum Álbum”), o texto é uma espécie de bênção poética, um desejo de que o amor e a inocência coexistam em cada lembrança da juventude.“Perfumes e Amor” expressa o ideal romântico de um sentimento espiritualizado, quase sagrado. O poeta transforma a natureza em metáfora do afeto e da beleza, revelando sua crença na delicadeza como forma de eternizar o amor.
3. Na rede (Casimiro de Abreu)
Nas horas ardentes do pino do dia
Aos bosques corri;
E qual linda imagem dos castos amores,
Dormindo e sonhando cercada de flores
Nos bosques a vi!
Dormia deitada na rede de penas
— O céu por dossel,
De leve embalada no quieto balanço
Qual nauta cismando num lago bem manso
Num leve batel!
Dormia e sonhava — no rosto serena
Qual um serafim;
Os cílios pendidos nos olhos tão belos,
E a brisa brincando nos soltos cabelos
De fino cetim!
Dormia e sonhava — formosa embebida
No doce sonhar,
E doce e sereno num mágico anseio
Debaixo das roupas batia-lhe o seio
No seu palpitar!
Dormia e sonhava — a boca entreaberta,
O lábio a sorrir;
No peito cruzados os braços dormentes,
Compridos e lisos quais brancas serpentes
No colo a dormir!
Dormia e sonhava — no sonho de amores
Chamava por mim,
E a voz suspirosa nos lábios morria
Tão terna e tão meiga qual vaga harmonia
De algum bandolim!
Dormia e sonhava — de manso cheguei-me
Sem leve rumor;
Pendi-me tremendo e qual fraco vagido,
Qual sopro da brisa, baixinho ao ouvido
Falei-lhe de amor!
Ao hálito ardente o peito palpita…
Mas sem despertar;
E como nas ânsias dum sonho que é lindo,
A virgem na rede corando e sorrindo…
Beijou-me — a sonhar!
Entrelinhas:
“Na rede” é o encontro entre sonho e desejo, onde o olhar do poeta transforma a cena cotidiana em uma visão quase sagrada do amor. A figura feminina aparece envolta pela natureza, dormindo sob o dossel do céu, símbolo da pureza idealizada que tanto seduz o romantismo.
O poema mistura erotismo e inocência com delicadeza rara — a mulher sonha e ama sem acordar, o amor acontece sem culpa. Casimiro revela aqui o traço mais maduro de sua poesia: o fascínio pelo instante em que o sentimento é tão intenso que parece um delírio, um amor que existe apenas “a sonhar”.
4. Mocidade (Casimiro de Abreu)
Ninon, Ninon, que fais tu de la vie?
L’heure s’enfuit, le jour succede au jour.
Rose ce soir, demain flétrie,
Comment vis-tu, toi qui n’as pas d’amour?!
MUSSET.
Doce filha da lânguida tristeza,
Ergue a fronte pendida — o sol fulgura!
Quando a terra sorri-se e o mar suspira
Por que te banha o rosto essa amargura?!
Por que chorar quando a natura é risos,
Quando no prado a primavera é flores?
— Não foge a rosa quando o sol a busca,
Antes se abrasa nos gentis fulgores.
Não! — Viver é amar, é ter um dia
Um amigo, uma mão que nos afague;
Uma voz que nos diga os seus queixumes,
Que as nossas mágoas com amor apague.
A vida é um deserto aborrecido
Sem sombra doce, ou viração calmante;
— Amor — é a fonte que nasceu nas pedras
E mata a sede à caravana errante.
Amai-vos! — disse Deus criando o mundo,
Amemos! — disse Adão no paraíso,
Amor! — murmura o mar nos seus queixumes,
Amor! — repete a terra num sorriso!
Doce filha da lânguida tristeza,
Tua alma a suspirar de amor definha…
— Abre os olhos gentis à luz da vida,
Vem ouvir no silêncio a voz da minha!
Amemos! Este mundo é tão tristonho!
A vida, como um sonho — brilha e passa;
Por que não havemos pra acalmar as dores
Chegar aos lábios o licor da taça?
O mundo! o mundo! — E que te importa o mundo?
— Velho invejoso, a resmungar baixinho!
Nada perturba a paz serena e doce
Que as rolas gozam no seu casto ninho.
Amemos! — tudo vive e tudo canta…
Cantemos! seja a vida — hinos e flores;
De azul se veste o céu… vistamos ambos
O manto perfumado dos amores.
……………………………………
Doce filha da lânguida tristeza,
Ergue a fronte pendida — o sol fulgura!
— Como a flor indolente da campina
Abre ao sol da paixão tua alma pura!
Entrelinhas:
Neste poema, Casimiro de Abreu celebra o amor como essência da juventude. Dirigindo-se a uma figura feminina melancólica, ele a convida a abrir-se para a vida, para o sol e para o sentimento. A tristeza, vista como desperdício da mocidade, é substituída pela chama do amor — força que renova e purifica.
“Mocidade” é um hino à vitalidade e à coragem de amar. Nele, o poeta aproxima o amor da própria criação divina, como se amar fosse participar do gesto original de Deus. O texto traduz a crença romântica de que viver plenamente é permitir-se sentir, mesmo sabendo que tudo, como o dia e a rosa, um dia passa.
5. Meus Oito Anos (Casimiro de Abreu)
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Como são belos os dias
Do despontar da existência!
— Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é — lago sereno,
O céu — um manto azulado,
O mundo — um sonho dourado,
A vida — um hino damor!
Que aurora, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado destrelas,
A terra de aromas cheia
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!
Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minhã irmã!
Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
— Pés descalços, braços nus —
Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo.
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!
…………………………..
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
— Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
A sombra das bananeiras
Debaixo dos laranjais!
Entrelinhas:
“Meus Oito Anos” é o poema da saudade por excelência. Casimiro de Abreu transforma a lembrança da infância em abrigo diante da dor da vida adulta. As imagens de liberdade e inocência — o céu azul, as brincadeiras, a despreocupação — simbolizam o paraíso perdido da juventude, onde tudo era puro e eterno.
Ao recordar o passado, o poeta revela também a consciência do tempo e da morte. Sua voz mistura ternura e lamento, como se cada verso tentasse recuperar o que o tempo levou. A infância, aqui, é mais que lembrança: é o ideal romântico de plenitude, o instante em que o ser ainda não conhece o desassossego de existir.
6. Minhalma é Triste (Casimiro de Abreu)
Minhalma é triste como a rola aflita
Que o bosque acorda desde o alvor da aurora,
E em doce arrulo que o soluço imita
O morto esposo gemedora chora.
E, como a rôla que perdeu o esposo,
Minhalma chora as ilusões perdidas,
E no seu livro de fanado gozo
Relê as folhas que já foram lidas.
E como notas de chorosa endeixa
Seu pobre canto com a dor desmaia,
E seus gemidos são iguais à queixa
Que a vaga solta quando beija a praia.
Como a criança que banhada em prantos
Procura o brinco que levou-lhe o rio,
Minhaalma quer ressuscitar nos cantos
Um só dos lírios que murchou o estio.
Dizem que há, gozos nas mundanas galas,
Mas eu não sei em que o prazer consiste.
— Ou só no campo, ou no rumor das salas,
Não sei porque — mas a minhalma é triste!
II
Minhalma é triste como a voz do sino
Carpindo o morto sobre a laje fria;
E doce e grave qual no templo um hino,
Ou como a prece ao desmaiar do dia.
Se passa um bote com as velas soltas,
Minhahna o segue namplidão dos mares;
E longas horas acompanha as voltas
Das andorinhas recortando os ares.
Às vezes, louca, num cismar perdida,
Minhalma triste vai vagando à toa,
Bem como a folha que do sul batida
Bóia nas águas de gentil lagoa!
E como a rola que em sentida queixa
O bosque acorda desde o albor da aurora,
Minhaahna em notas de chorosa endeixa
Lamenta os sonhos que já tive outrora.
Dizem que há gozos no correr dos anos!…
Só eu não sei em que o prazer consiste.
— Pobre ludíbrio de cruéis enganos,
Perdi os risos — a minhalma é triste!
III
Minhalma é triste como a flor que morre
Pendida à beira do riacho ingrato;
Nem beijos dá-lhe a viração que corre,
Nem doce canto o sabiá do mato!
E como a flor que solitária pende
Sem ter carícias no voar da brisa,
Minhalma murcha, mas ninguém entende
Que a pobrezinha só de amor precisa!
Amei outrora com amor bem santo
Os negros olhos de gentil donzela,
Mas dessa fronte de sublime encanto
Outro tirou a virginal capela.
Oh! quantas vezes a prendi nos braços!
Que o diga e fale o laranjal florido!
Se mão de ferro espedaçou dois laços
Ambos choramos mas num só gemido!
Dizem que há gozos no viver damores,
Só eu não sei em que o prazer consiste!
— Eu vejo o mundo na estação das flores
Tudo sorri — mas a minhalma é triste!
IV
Minhalma é triste como o grito agudo
Das arapongas no sertão deserto;
E como o nauta sobre o mar sanhudo,
Longe da praia que julgou tão perto!
A mocidade no sonhar florida
Em mim foi beijo de lasciva virgem:
— Pulava o sangue e me fervia a vida,
Ardendo a fronte em bacanal vertigem.
De tanto fogo tinha a mente cheia!…
No afã da glória me atirei com ânsia…
E, perto ou longe, quis beijar a sreia
Que em doce canto me atraiu na infância.
Ai! loucos sonhos de mancebo ardente!
Espranças altas… Ei-las já tão rasas!…
— Pombo selvagem, quis voar contente…
Feriu-me a bala no bater das asas!
Dizem que há gozos no correr da vida…
Só eu não sei em que o prazer consiste!
— No amor, na glória, na mundana lida,
Foram-se as flores — a minhalma é triste!
Entrelinhas:
“Minhalma é Triste” é o retrato mais íntimo da melancolia romântica. Casimiro de Abreu confessa o peso das ilusões perdidas e transforma a dor em canto. A comparação constante com elementos da natureza — a rola, a flor, a vaga, o sino — traduz a fusão entre sentimento e paisagem: a alma humana reflete o mundo que a cerca, e o mundo, por sua vez, parece chorar junto com ela. Dividido em quatro partes, o poema revela o amadurecimento da tristeza: começa com o lamento da perda e termina na resignação. O amor frustrado, a glória não alcançada e a passagem do tempo compõem o retrato de um eu poético que já não espera consolo. É o desfecho da juventude idealista — a constatação de que viver também é perder.
7. Minha Terra – Casimiro de Abreu
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá.
G. DIAS.
Todos cantam sua terra,
Também vou cantar a minha,
Nas débeis cordas da lira
Hei de fazê-la rainha;
— Hei de dar-lhe a realeza
Nesse trono de beleza
Em que a mão da natureza
Esmerou-se em quanto tinha.
Correi pr’as bandas do sul:
Debaixo dum céu de anil
Encontrareis o gigante
Santa Cruz, hoje Brasil;
— É uma terra de amores
Alcatifada de flores,
Onde a brisa fala amores
Nas belas tardes de abril.
(…)
É um país majestoso
Essa terra de Tupá,
Desd’o Amazonas ao Prata,
Do Rio Grande ao Pará!
— Tem serranias gigantes
E tem bosques verdejantes
Que repetem incessantes
Os cantos do sabiá.
(…)
Quando Dirceu e Marília
Em terníssimos enleios
Se beijavam com ternura
Em celestes devaneios;
Da selva o vate inspirado,
O sabiá namorado,
Na laranjeira pousado
Soltava ternos gorjeios.
Foi ali, foi no Ipiranga,
Que com toda a majestade
Rompeu de lábios augustos
O brado da liberdade;
Aquela voz soberana
Voou na plaga indiana
Desde o palácio à choupana,
Desde a floresta à cidade!
Um povo ergueu-se cantando
— Mancebos e anciãos —
E, filhos da mesma terra,
Alegres deram-se as mãos;
Foi belo ver esse povo
Em suas glórias tão novo,
Bradando cheio de fogo:
— Portugal! somos irmãos!
Quando nasci, esse brado
Já não soava na serra
Nem os ecos da montanha
Ao longe diziam — guerra!
Mas não sei o que sentia
Quando, a sós, eu repetia
Cheio de nobre ousadia
O nome da minha terra!
Entrelinhas:
“Minha Terra” é a expressão do amor de Casimiro de Abreu pelo Brasil, uma homenagem à pátria que mistura orgulho, ternura e nostalgia. Inspirado em Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, o poeta constrói aqui uma versão mais pessoal e sentimental do tema: sua terra não é apenas a do sabiá, mas também a da juventude e das lembranças de um tempo inocente. O poema une o tom lírico e o patriótico, exaltando as paisagens naturais e o espírito fraternal do povo. Ao mesmo tempo, há uma delicada melancolia: o eu lírico canta de longe, como quem tenta reencontrar a terra amada pela memória. É o retrato do exílio afetivo — a distância que acende o amor.
8. Os Meus Sonhos
I
Como era belo esse tempo
De tão doces ilusões,
De tardes belas, amenas,
De noites sempre serenas,
De estrelas vivas e puras;
Quadra de riso e de flores
Em que eu sonhava venturas,
Em que eu cuidava de amores.
(…)
II
Sonhei que o mundo era um prado
Lindo, lindo, matizado
Das flores do meu jardim;
Sonhei a vida uma estrada
De gozos entrelaçada,
De gozos que não têm fim.
Esses sonhos de magia
Criei-os na fantasia
À meiga luz do luar,
E quando conta segredos
Na rama dos arvoredos
Na brisa que beija o mar.
(…)
III
Mentira, tudo mentira!
Os meus sonhos… ilusões!
As cordas da minha lira
Já não soletram canções,
A mente já não delira,
E se louco num momento
Revolvo no pensamento
Esse passado de amores…
Se triste o peito suspira…
Eu ouço um eco da terra
Bradar-me com voz que aterra:
— Mentira, tudo mentira!
Foram sonhos. Eram lindos,
Eram lindos… mas passaram!
E desses sonhos já findos
Só lembranças me ficaram.
Só lembranças bem saudosas
Dessas noites tão formosas
Em que os sonhos despontaram,
Só lembranças desses sonhos,
Desses sonhos que passaram!…
Hoje vivo, se é que é vida
Andar co’a fronte pendida
Calado e triste a cismar;
E nessa imensa tristeza,
Nessas horas d’incerteza
Em que adormece o luar,
Em que toda a natureza
E’ silêncio, amor e paz,
Eu sinto a alma saudosa
Perguntar com voz queixosa:
— Lindos sonhos, onde estais?!
Então um eco medonho
Responde por cada sonho
C’um gemido… e nada mais!
(…)
Entrelinhas:
“Os Meus Sonhos” é o testamento da desilusão. Casimiro de Abreu revisita os tempos em que acreditava na felicidade como um caminho de flores e descobre, com a maturidade, que tudo o que julgava eterno se desfaz na passagem do tempo. A musicalidade leve dos primeiros versos cede lugar ao tom grave e confessional do fim, como se a própria poesia se tornasse eco de um ideal desfeito. O poema é um espelho da alma romântica: sonhadora, sensível e trágica. Ao repetir “Mentira, tudo mentira”, o poeta reconhece que viver é também acordar dos encantos. Ainda assim, há beleza nesse despertar, porque o que resta — a lembrança — é a forma mais humana e duradoura dos sonhos.
9. Dores
Há dores fundas, agonias lentas,
Dramas pungentes que ninguém consola,
Ou suspeita sequer!
Mágoas maiores do que a dor dum dia,
Do que a morte bebida em taça morna
De lábios de mulher!
Doces falas de amor que o vento espalha,
Juras sentidas de constância eterna
Quebradas ao nascer;
Perfídia e olvido de passados beijos…
São dores essas que o tempo cicatriza
Dos anos no volver.
Se a donzela infiel nos rasga as folhas
Do livro d’alma, magoado e triste
Suspira o coração;
Mas depois outros olhos nos cativam,
E loucos vamos em delírios novos
Arder noutra paixão.
Amor é o rio claro das delícias
Que atravessa o deserto, a veiga, o prado,
E o mundo todo o tem!
Que importa ao viajor que a sede abrasa,
Que quer banhar-se nessas águas claras,
Ser aqui ou além?
A veia corre, a fonte não se estanca,
E as verdes margens não se crestam nunca
Na calma dos verões;
Ou quer na primavera, ou quer no inverno,
No doce anseio do bulir das ondas
Palpitam corações.
Não! a dor sem cura, a dor que mata,
É, moço ainda, e perceber na mente
A dúvida a sorrir!
É a perda dura dum futuro inteiro
E o desfolhar sentido das gentis coroas,
Dos sonhos do porvir!
É ver que nos arrancam uma a uma
Das asas do talento as penas de ouro,
Que voam para Deus!
É ver que nos apagam d’alma as crenças
E que profanam o que santo temos
Co’o riso dos ateus!
É assistir ao desabar tremendo,
Num mesmo dia, d’ilusões douradas,
Tão cândidas de fé!
É ver sem dó a vocação torcida
Por quem devera dar-lhe alento e vida
E respeitá-la até!
É viver, flor nascida nas montanhas,
Para aclimar-se, apertada numa estufa
À falta de ar e luz!
É viver, tendo n’alma o desalento,
Sem um queixume, a disfarçar as dores
Carregando a cruz!
Oh! ninguém sabe como a dor é funda,
Quanto pranto s’engole e quanta angústia
A alma nos desfaz!
Horas há em que a voz quase blasfema…
E o suicídio nos acena ao longe
Nas longas saturnais!
Definha-se a existência a pouco e pouco,
E ao lábio descorado o riso franco
Qual dantes, já não vem;
Um véu nos cobre de mortal tristeza,
E a alma em luto, despida dos encantos,
Amor nem sonhos tem!
Murcha-se o viço do verdor dos anos,
Dorme-se moço e despertamos velho,
Sem fogo para amar!
E a fronte jovem que o pesar sombreia
Vai, reclinada sobre um colo impuro,
Dormir no lupanar!
Ergue-se a taça do festim da orgia,
Gasta-se a vida em noites de luxúria
No leito dos bordéis,
E o veneno se sorve a longos tragos
Nos seios brancos e nos lábios frios
Das lânguidas Frinés!
Esquecimento! — mortalha para as dores —
Aqui na terra é a embriaguez do gozo,
A febre do prazer:
A dor se afoga no fervor dos vinhos,
E no regaço das Marcôs modernas
E’ doce então morrer!
Depois o mundo diz: — Que libertino!
A folgar no delírio dos alcouces
As asas empanou! —
Como se ele, algoz das esperanças,
As crenças infantis e a vida d’alma
Não fosse quem matou!…
………………………………….
Oh! há dores tão fundas como o abismo,
Dramas pungentes que ninguém consola
Ou suspeita sequer!
Dores na sombra, sem carícias d’anjo,
Sem voz de amigo, sem palavras doces,
Sem beijos de mulher!…
Entrelinhas:
“Dores” revela o Casimiro de Abreu mais maduro e dilacerado. Longe do sentimentalismo juvenil, o poeta mergulha na dor existencial — não a dor do amor perdido, mas a do espírito ferido pela desesperança. O poema começa com lamentos sobre paixões passageiras e termina num abismo moral e filosófico, denunciando a perda de fé, o desgaste da vocação e a morte interior que o tempo traz. A dor aqui não é teatral, mas ontológica: é a consciência da finitude, da corrupção dos ideais e da solidão do homem que já não encontra amparo nem na arte, nem na religião. O verso final — “Sem voz de amigo, sem palavras doces, / Sem beijos de mulher” — resume o desamparo absoluto do poeta romântico diante da vida: o amor e a poesia já não bastam para consolar a alma humana.
10. Desejo – Casimiro de Abreu
Se eu soubesse que no mundo
Existia um coração,
Que só por mim palpitasse
De amor em terna expansão;
Do peito calara as mágoas,
Bem feliz eu era então!
Se essa mulher fosse linda
Como os anjos lindos são,
Se tivesse quinze anos,
Se fosse rosa em botão,
Se inda brincasse inocente
Descuidosa no gazão;
Se tivesse a tez morena,
Os olhos com expressão,
Negros, negros, que matassem,
Que morressem de paixão,
Impondo sempre tiranos
Um jugo de sedução;
Se as tranças fossem escuras,
Lá castanhas é que não,
E que caíssem formosas
Ao sopro da viração,
Sobre uns ombros torneados,
Em amável confusão;
Se a fronte pura e serena
Brilhasse dinspiração,
Se o tronco fosse flexível
Como a rama do chorão,
Se tivesse os lábios rubros,
Pé pequeno e linda mão;
Se a voz fosse harmoniosa
Como dharpa a vibração,
Suave como a da rola
Que geme na solidão,
Apaixonada e sentida
Como do bardo a canção;
E se o peito lhe ondulasse
Em suave ondulação,
Ocultando em brancas vestes
Na mais branda comoção
Tesouros de seios virgens,
Dois pomos de tentação;
E se essa mulher formosa
Que me aparece em visão,
Possuísse uma alma ardente,
Fosse de amor um vulcão;
Por ela tudo daria…
— A vida, o céu, a razão!
Entrelinhas:
Em “Desejo”, Casimiro de Abreu dá voz ao anseio romântico e carnal do amor idealizado. O poema descreve a mulher-sonho — bela, pura, quase divina — e, ao mesmo tempo, revela a dualidade entre o espiritual e o terreno. O eu lírico não ama apenas a imagem angelical, mas também a força sensorial que ela desperta. É a tentativa de conciliar a inocência e a paixão, a alma e o corpo.
O texto traduz o conflito central do Romantismo: a busca por um amor absoluto, capaz de dar sentido à existência. Casimiro sonha com o impossível — uma mulher perfeita e inalcançável — e termina reconhecendo, em tom de rendição, que por ela entregaria “a vida, o céu, a razão”. É o amor tornado destino e perdição, o ponto onde o poeta já não distingue desejo de devoção.
Ler as poesias de Casimiro de Abreu é atravessar os caminhos da emoção humana com os olhos da juventude e a alma da saudade. Entre o amor e a perda, a esperança e o desencanto, o poeta constrói uma obra que reflete o coração do Romantismo brasileiro: intensa, sensível e profundamente humana.
Em As Primaveras, sua única coletânea publicada em vida, Casimiro de Abreu condensou tudo o que é efêmero — a infância, o amor, o tempo — em versos que ainda hoje soam com frescor e melancolia. Suas palavras continuam a ecoar porque falam de algo que não envelhece: o desejo de sentir a vida em plenitude, mesmo sabendo que ela passa.
“E quando eu morrer, meninas, / Que seja de madrugada, / Ao canto do galo triste, / À luz da primeira alvorada.”
Revisitar Casimiro de Abreu é reencontrar a beleza do efêmero — e lembrar que, entre flores e dores, viver também é sonhar!
Fontes e leituras complementares:
- Academia Brasileira de Letras – Biografia de Casimiro de Abreu
- Domínio Público – As Primaveras (PDF gratuito)
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