Chegando tarde para Antonio Cicero

O poeta Antonio Cicero nos deixou. Muito doente por conta do avanço implacável do Alzheimer, escolheu dar fim à sua vida na Suiça, lugar em que morrer com dignidade prevalece ao morrer.

E após a sua partida, como acontece no mundo – real ou virtual – uma avalanche sobre ele, sua vida e sua poesia nos foi depositiada. E aqui estou para confessar: Eu não conhecida Antonio Cicero. Nada. Nadinha. E dentro do campo da literatura, de uma profissional da área, vem aquela vergonha. Apesar de também morar na gente aquela certeza de que é impossível conhecer e ler de tudo.

Mas, graças ao tempo e à vida, coisas que estão irremediáveis podem ser remediáveis. Aplicar pílulas de poesia de Antonio Cicero é o meu desejo do aqui agora. E assim mergulhei. Vivenciei. Li em voz alta. Apreciei e sorri. E agora compartilho com você!

Este é o Antonio Cicero

A foto foi tirada em sua casa. Humaitá, Rio de Janeiro, 2017.

Ele era irmão da cantora/compositora Marina LIma. E também compôs algumas canções… A música Fullgás foi feita pelos dois.

Antonio Cicero

Carta de despedida de Antonio Cicero:

“Queridos amigos,
Encontro-me na Suíça, prestes a praticar eutanásia. O que ocorre é que minha vida se tornou insuportável. Estou sofrendo de Alzheimer.
Assim, não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem.
Exceto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi.
Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia.
Não consigo me concentrar nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo.
Apesar de tudo isso, ainda estou lúcido bastante para reconhecer minha terrível situação.
A convivência com vocês, meus amigos, era uma das coisas – senão a coisa – mais importante da minha vida. Hoje, do jeito em que me encontro, fico até com vergonha de reencontrá-los.
Pois bem, como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo.
Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade.
Eu os amo muito e lhes envio muitos beijos e abraços!”

Poesias de Antonio Cicero

1. Templo

Para que as Musas residentes lá no Olimpo
façam meus poemas palavras que desejem,
eu que, à sombra de um deus muito mais triste, habito
a fralda de uma montanha muito mais verde,

declaro não serem os versos que escrevo obras
de arte mas bases, paredes e donaires
de templos construídos com mãos e com sobras
de paixões, mergulhos, fodas, livros, viagens

(precário material com o qual é elaborado
tudo o que merece aspirar a eterna glória)
e — ainda com os seus andaimes — os consagro
a elas, às filhas alegres da Memória,

deusa que não é, como querem crer os néscios,
a guardiã do passado, com o qual pouco
se importa, mas antes a que nos oferece o
esquecimento quando canta o imorredouro.

Livro: Guardar: Poemas Escolhidos.

2. Canção da alma caída

Aprendi desde criança
que é melhor me calar
e dançar conforme a dança
do que jamais ousar

mas às vezes pressinto
que não me enquadro na lei:
minto sobre o que sinto
e esqueço tudo o que sei.

Só comigo ouso lutar:
sem me poder vencer,
tento afogar no mar
o fogo em que quero arder.

De dia caio minh’alma.
Só à noite caio em mim:
por isso me falta calma
e vivo inquieto assim.

Livro: Guardar: Poemas Escolhidos.

3. Alguns versos

As letras brancas de alguns versos me espreitam,
em pé, do fundo azul de uma tela, atrás
da qual luz natural adentra a janela
por onde, ao levantar quase nada o olhar,
vejo o sol aberto amarelar as folhas
da acácia em alvoroço: Marcelo está
para chegar. E de repente, de fora
do presente, pareço apenas lembrar
disso tudo como de algo que não há de
retornar jamais e em lágrimas exulto
de sentir falta justamente da tarde
que me banha e escorre rumo ao mar sem margens
de cujo fundo veio para ser mundo
e se acendeu feito um fósforo, e é tarde.

Livro: A cidade e os livros

4. Aparências

Não sou mais tolo não mais me queixo:
enganassem-me mais desenganassem-me mais
mais rápidas mais vorazes mais arrebatadoras
mais volúveis mais voláteis
mais aparecessem para mim e desaparecessem
mais velassem mais desvelassem mais revelassem mais revelassem
mais

eu viveria tantas mortes
morreria tantas vidas
jamais me queixaria
jamais.

Livro: Porventura 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *