100 anos da morte de Franz Kafka com nova coletânea de contos do autor

Para assinalar o centenário da morte de Franz Kafka, a Editora Estação Liberdade anuncia o lançamento de uma coletânea, bilíngue, de contos do autor.

Por vezes aguçado, por vezes delirante. Não é nenhuma novidade o fato de que a sensibilidade transmórfica de Franz Kafka valsa de um lado a outro cruzando a linha que separa o real do surreal. Mas isso, a bem da verdade, é apenas uma suposição corriqueira, pois há ocasiões onde ele mesmo nos faz duvidar da existência da fronteira entre os mundos, implicando sugestivamente a sobreposição destes com uma naturalidade avassaladora.

100 anos da morte de Franz Kafka com nova coletânea de contos do autor

Podemos encontrar nos textos aqui presentes algumas características do mundo kafkiano, como uma apreensão perturbada da realidade em “À noite” e no fragmento de “O grande nadador”, ou como leituras minuciosas acerca das relações sociais em “O recrutamento de tropas” e “Uma pequena mulher”. Notamos críticas à burocracia em “Sobre a questão das leis” e “Intercessores”, aspectos fabulares em “O brasão da cidade” e “Pequena fábula”, e evocações à mitologia grega em “Prometeu” e “Poseidon”.

Com o objetivo de marcar o centenário da morte de Kafka, esta edição bilíngue apresenta vinte traduções de contos curtos e uma tradução de um fragmento de texto do autor, escritos entre 1919 e 1924, ano de sua morte, e revisita a inquietude que permeou sua obra como um todo. A rigor, estes textos não deveriam estar disponíveis ao público — foi a desobediência de Max Brod, escritor amigo de Kafka que deu título à maioria dos contos póstumos, que os levaram a ser publicados, apesar do registro no testamento do autor para que fossem destruídos.

Quem foi Franz Kafka

Franz Kafka, nascido em 1883 na cidade de Praga, formou-se em direito em 1906 e, após um ano de serviço compulsório e não remunerado como atendente legal em cortes civis e criminais, passou a atuar como investigador em uma companhia de seguros. Em 1911, tornou-se sócio da primeira fábrica de amianto de Praga, trabalho ao qual inicialmente se dedicava com disposição, mas que posteriormente ressentia por lhe interferir em seu tempo de escrita.

Durante seus anos de estudo e de trabalho com seguros, Kafka encontrou tempo para se dedicar à leitura de autores como Dostoiévski, Flaubert, Gógol e Goethe. Além da literatura tcheca, veio a se interessar também pelo teatro ídiche, o que o fez mergulhar na língua e na literatura dessa cultura com a qual tinha contato por conta de suas raízes judaicas.

Em suas obras, podemos notar temas como alienação social, ansiedade existencial, permeados com frequente apelo ao absurdo. Ao longo da vida, relacionou-se com algumas mulheres, mas nunca chegou a se casar. Em 1917, foi diagnosticado com tuberculose, doença incurável à época, conseguindo uma pensão no ano seguinte. A morte de Franz Kafka ocorreu em abril de 1924, com a condição crítica da doença, foi buscar tratamento em uma cidade próxima a Viena, onde veio a falecer.

Trechos

“Eu retornei, atravessei o pátio e estou olhando à minha volta. Trata-se da antiga herdade do meu pai. A poça no meio. Equipamentos enroscados, velhos e inúteis, bloqueiam o caminho para a escada do sótão. A gata espreita sobre o corrimão. Um pano rasgado, enrolado à toa em volta de um palanque, ergue-se ao vento. Cheguei. Quem me receberá? Quem espera atrás da porta da cozinha? Sai fumaça da chaminé, preparam o café da tarde. Você percebe aconchego, sente-se acolhido? Já não sei, estou bem inseguro. Sim, é a casa do meu pai, mas há objetos frios lado a lado, como se cada um estivesse ocupado com seus próprios assuntos que eu meio esqueci, meio nunca cheguei a conhecer.” [Retorno a casa, p. 21]

“E você está em vigília, é um dos vigilantes, encontra o próximo acenando com a madeira acesa retirada de uma pilha de galhos ao seu lado. Por que você está em vigília? Um tem de ficar vigiando, dizem. Um tem de estar presente.” [À noite, p. 37]

“Sentia uma verdadeira urgência de falar, pois me parecia que aqui, e provavelmente também em outros lugares, certas coisas careciam de esclarecimento público e aberto, e assim comecei: “Ilustres convidados! Admito que detenho um recorde mundial, mas, se me perguntarem como o alcancei, não poderia responder-lhes de maneira satisfatória. Na verdade, acontece que nem sei nadar. Sempre quis aprender, mas nunca surgiu oportunidade para tanto. Então como aconteceu de eu ter sido enviado pela minha pátria às Olimpíadas? É justamente dessa pergunta que eu também me ocupo. Primeiro, devo constatar que aqui não estou na minha pátria e, apesar de grande esforço, não entendo palavra alguma do que é falado aqui. ” [O grande nadador (fragmento), p. 49]

“No fundo sempre foi assim, sempre houve aquelas pessoas inúteis, guarda-esquinas e gastadores de ar, espertalhões que sempre justificavam sua proximidade, de preferência pelo parentesco, sempre prestavam atenção, sempre tinham o nariz cheio de faro, mas o resultado disso tudo é apenas que continuam parados ali.” [Uma pequena mulher, p. 115]

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