7 poesias de Conceição Evaristo comentadas: memória, corpo e resistência

Nesta seleção de poesias de Conceição Evaristo, do livro Poemas da recordação e outros movimentos, a palavra vira corpo, memória e resistência. Cada poema convoca afetos e histórias ancestrais, costurando a experiência das mulheres negras no Brasil. Abaixo, você encontra interpretações breves para guiar a leitura, porém sem domesticar a força da voz poética.

Do fogo que em mim arde

Sim, eu trago o fogo,
o outro,
não aquele que te apraz.
Ele queima sim,
é chama voraz
que derrete o bivo de teu pincel
incendiando até ás cinzas
O desejo-desenho que fazes de mim.

Sim, eu trago o fogo,
o outro,
aquele que me faz,
e que molda a dura pena
de minha escrita.
é este o fogo,
o meu, o que me arde
e cunha a minha face
na letra desenho
do auto-retrato meu.

Interpretação: O “fogo” que não agrada ao outro é o da autodefinição. A poeta recusa o retrato que fazem dela (“teu pincel”) e afirma a própria forja: escrever é moldar-se, cunhar o rosto na letra. Ardor aqui é potência criadora — não ornamento.

Capa do livro de poesias de Conceição Evaristo: Poemas da Recordação e outros movimentos
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Meia lágrima

Não,
a água não me escorre
entre os dedos,
tenho as mãos em concha
e no côncavo de minhas palmas
meia gota me basta.

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Das lágrimas em meus olhos secos,
basta o meio tom do soluço
para dizer o pranto inteiro.

Sei ainda ver com um só olho,
enquanto o outro,
o cisco cerceia
e da visão que me resta
vazo o invisível
e vejo as inesquecíveis sombras
dos que já se foram.

Da língua cortada,
digo tudo,
amasso o silencio
e no farfalhar do meio som
solto o grito do grito do grito
e encontro a fala anterior,
aquela que emudecida,
conservou a voz e os sentidos
nos labirintos da lembrança.

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Interpretação: A falta vira técnica de sobrevivência: meia gota basta para dizer o pranto inteiro. Com “mãos em concha”, o sujeito preserva visão, voz e memória mesmo quando feridos. A poeta transforma escassez em forma — economia verbal que sustenta o dizer.

poesias de Conceição Evaristo
Leia a resenha “Olhos d’água: um registro de vidas silenciadas” | Compre o livro na Amazon

Recordar é preciso

O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos
A memória bravia lança o leme:
Recordar é preciso.

O movimento vaivém nas águas-lembranças
dos meus marejados olhos transborda-me a vida,
salgando-me o rosto e o gosto.
Sou eternamente náufraga,
mas os fundos oceanos não me amedrontam
e nem me imobilizam.

Uma paixão profunda é a bóia que me emerge.
Sei que o mistério subsiste além das águas.

Interpretação: O mar da lembrança é método de existir. Naufrágio não paralisa; vira bússola. A memória salineia rosto e gosto, mas sustém a travessia. A “paixão profunda” funciona como bóia ética, afirmando vida para além do medo.

Além das poesias de Conceição Evaristo, conheça sua prosa: Olhos d’água (Conceição Evaristo): um registro de vidas silenciadas

Vozes-mulheres

A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.

Interpretação: Genealogia da voz: bisavó, avó, mãe, eu, filha. Cada geração desloca o volume — do lamento à ação. A filha recolhe as vozes e as transforma em fala e ato. É o manifesto da escrevivência: memória como motor de liberdade.

Frutífera

– Da solidão do fruto –
De meu corpo ofereço
as minhas frutescências,
casca, polpa, semente.
E vazada de mim mesma
com desmesurada gula
apalpo-me em oferta
a fruta que sou.

Mastigo-me
e encontro o coração
de meu próprio fruto,
caroço aliciado,
a entupir os vazios
de meus entrededos.

– Da partilha do fruto –
De meu corpo ofereço
as minhas frutescências,
e ao leve desejo-roçar
de quem me acolhe,
entrego-me aos suados,
suaves e úmidos gestos
de indistintas mãos e
de indistintos punhos,
pois na maturação da fruta,
em sua casca quase-quase
rompida,
boca proibida não há.

Interpretação: O corpo-fruta se autocolhe, mastiga e partilha. O erotismo aparece como soberania: a poeta decide o toque e a oferta. Contra interditos coloniais, afirma-se o desejo como conhecimento e o prazer como gramática do mundo.

Está gostando das poesias de Conceição Evaristo? Leia também: Conceição Evaristo: “o ato de traçar uma escrevivência”

A noite não adormece nos olhos das mulheres

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
a lua fêmea, semelhante nossa,
em vigília atenta vigia
a nossa memória.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres,
há mais olhos que sono
onde lágrimas suspensas
virgulam o lapso
de nossas molhadas lembranças.

A noite não adormece
nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás, Nzingas, Ngambeles
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas.

A noite não adormecerá
jamais nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.

Interpretação: Vigília coletiva: a lua “fêmea” guarda a memória e costura uma rede de resistência milenar. O poema convoca linhagens (Ainás, Nzingas) e transforma dor em trama. Não dormir é manter viva a história.

Da calma e do silêncio

Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.

Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.

Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.

Interpretação: Poética do tempo lento. Morder a palavra, reter a sombra, parar os pés: insurgência contra a pressa. Há mundos submersos que só o silêncio alcança — a poesia como prática de atenção radical.

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Vídeo do canal Livro&Café

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Foto em destaque: Ocupacao Conceicao Evaristo, exposicao em homenagem ao trabalho da escritora, no Itau Cultural. Foto: Rafael Arbex / ESTADÃO

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