Quando você tira um livro de Fernando Pessoa da prateleira, deve preparar-se para a chuva de palavras em meteoros linguísticos. Ler Pessoa é aceitar um mergulho na solidão e na lucidez, onde cada frase revela o peso e o brilho da consciência.
Neste artigo, selecionei 20 trechos do Livro do Desassossego — uma das obras mais intensas da literatura modernista — acompanhados de breves interpretações que ajudam a sentir o texto de dentro para fora.
Prepare-se. Leia com calma. Saboreie as palavras. Escute o silêncio entre elas.
“Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.”
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego, p.48 Companhia das Letras
Entrelinhas: Pessoa transforma a existência em sala de espera. Aqui, o sujeito não vive: aguarda. Essa imagem da vida como hospedaria passageira é um símbolo do tédio moderno e da consciência que tudo observa, mas nada muda.
“Escrevo, triste, no meu quarto quieto, sozinho como sempre tenho sido, sozinho como sempre serei. E penso se a minha voz, aparentemente tão pouca coisa, não encarna a substância de milhares de vozes, a fome de dizerem-se de milhares de vidas, a paciência de milhões de almas submissas como a minha ao destino quotidiano, ao sonho inútil, à esperança sem vestígios. Nestes momentos meu coração pulsa mais alto por minha consciência dele. Vivo mais porque vivo maior.”
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego, p. 52. Companhia das Letras
Entrelinhas: Escrever é existir — e também dissolver-se. A solidão aqui não é um drama, mas uma condição estética: o ato de escrever dá sentido ao isolamento. Pessoa cria uma voz coletiva feita de almas submissas e sonhos inúteis.

“Tenho ternura, ternura até às lágrimas, pelos meus livros de outros em que escrituro, pelo tinteiro velho de que me sirvo, pelas costas dobradas do Sérgio, que faz guias de remessa um pouco para além de mim. Tenho amor a isto, talvez porque não tenha mais nada que amar – ou talvez, também, porque nada valha o amor de uma alma, e, se temos por sentimento que o dar, tanto vale dá-lo ao pequeno aspecto do meu tinteiro como à grande indiferença das estrelas.”
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego, p. 54. Companhia das Letras
Entrelinhas: A ternura pelos objetos de trabalho revela o afeto pelo cotidiano. Bernardo Soares encontra beleza até no tinteiro velho — um amor pequeno, mas absoluto, que substitui o amor humano impossível.
“Sim, a Arte, que mora na mesma rua que a Vida, porém num lugar diferente, a Arte que alivia da vida sem aliviar de viver, que é tão monótona como a mesma vida, mas só em lugar diferente.”
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego, p. 55 Companhia das Letras
Entrelinhas: Aqui, arte e vida são vizinhas, mas não se tocam. A arte alivia, mas não redime. É uma cópia bela do sofrimento, um reflexo da realidade em outra luz.
“Tudo em mim é a tendência para ser a seguir outra coisa; uma impaciência da alma consigo mesma, como uma criança inoportuna; um desassossego sempre crescente e sempre igual. Tudo me interessa e nada me prende.”
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego, p. 55/56 Companhia das Letras
Entrelinhas: O desassossego é movimento permanente. Pessoa traduz o inconformismo existencial: tudo interessa, nada prende. É a essência da modernidade — viver em fluxo, sem estabilidade.
“Nós nunca nos realizamos.
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego, p. 56 Companhia das Letras
Somos dois abismos – um poço fitando o céu.”
Entrelinhas: Um dos fragmentos mais poderosos. O ser humano é dualidade pura: vazio e desejo. Pessoa resume aqui sua metafísica melancólica — somos o que nos falta.

“Viver é fazer meia com uma intenção dos outros. Mas, ao fazê-la, o pensamento é livre, e todos os príncipes encantados podem passear nos seus parques entre mergulho e mergulho da agulha de marim com bico reverso. Crochés das coisas… Intervalo… Nada…”
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego, p. 57 Companhia das Letras
Entrelinhas: A imagem doméstica da “meia” torna o cotidiano filosófico. Pessoa insinua que viver é costurar o destino alheio com a linha do pensamento próprio — um gesto simples que contém o infinito.
“Tudo isto é sonho e fantasmagoria, e pouco vale que o sonho seja lançamentos como prosa de bom porte. Que serve sonhar com princesas, mais que sonhar com a porta da entrada do escritório? Tudo que sabemos é uma impressão nossa, e tudo que somos é uma impressão alheia, isolada de nós, que, sentindo-nos, nos constituímos nosso próprios espectadores ativos, nossos deuses por licença da Câmara.”
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego, p. 57/58 Companhia das Letras
Entrelinhas: O real e o sonho se confundem. Para Bernardo Soares, a existência é teatro sem plateia — somos atores, narradores e espectadores de nós mesmos.
“Em nada me pesa ou em mim dura o escrúpulo da hora presente. Tenho fome da extensão do tempo, e quero ser eu sem condições.”
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego, p. 58 Companhia das Letras
Entrelinhas: Aqui aparece o desejo de se libertar do tempo. Pessoa quer ser “eu sem condições”, fora das amarras do agora. É a utopia da liberdade interior.
“Talvez o meu destino seja eternamente ser guarda-livros, e a poesia ou a literatura uma borboleta que, pousando-me na cabeça, me torne tanto mais ridículo quanto maior for a sua própria beleza.”
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego, p. 60 Companhia das Letras
Entrelinhas: A ironia amarga do poeta que se reconhece funcionário. É o retrato da modernidade: a alma criadora aprisionada pelo trabalho. Pessoa transforma a rotina em poesia da resignação.
“Era a ocasião de estar alegre. Mas pesava-me qualquer coisa, uma ânsia desconhecida, um desejo sem definição, nem até reles. Tardava-me, talvez, a sensação de estar vivo. E, quando me debrucei da janela altíssima, sobre a rua para onde olhei sem vê-la, senti-me de repente um daqueles trapos úmidos de limpar coisas sujas, que se levam para a janela para secar, mas se esquecem, enrodilhados, no parapeito que mancam lentamente.”
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego, p. 67 Companhia das Letras
Entrelinhas: A alegria se torna impossível, porque a lucidez pesa. A imagem do trapo esquecido à janela é um autorretrato de Pessoa: um ser que seca no parapeito da própria consciência.
“Durmo e desdurmo.
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego, p. 69/70 Companhia das Letras
Do outro lado de mim, lá atrás de onde jazo, o silêncio da casa toca no infinito. Oiço cair o tempo, gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair. Oprime-me fisicamente o coração a memória, reduzida a nada, de tudo quanto foi ou fui. (…) Respiro, suspirando, e a minha respiração acontece – não é minha. Sofro sem sentir nem pensar. O relógio de casa, lugar certo lá ao meio do infinito, soa a meia hora seca e nula.”
Entrelinhas: O tempo pinga, invisível. Pessoa descreve o tédio como fenômeno físico — o tempo que cai gota a gota, sem som, é o símbolo perfeito da vida suspensa.
“Não o prazer, não a glória, não o poder: a liberdade, unicamente a liberdade.”
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego, p. 72 Companhia das Letras
Entrelinhas: A clareza de um manifesto. Pessoa substitui todas as ambições pela busca do espírito livre, o único ideal que não escraviza.
“Assim passeio lentamente a minha consciência consciente, no meu tronco de árvore usual. Assim passeio o meu destino que anda, pois eu não ando; o meu tempo que segue, pois eu não sigo.”
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego, p. 79 Companhia das Letras
Entrelinhas: O narrador não caminha — é caminhado. A consciência é o tronco e o destino anda sozinho. O corpo é apenas o disfarce da mente inquieta.

“Com a morte? Não, nem com a morte. Quem vive como eu não morre: acaba, murcha, desvegeta-se. O lugar onde esteve fica sem ele ali estar, a rua por onde andava fica sem ele lá ser visto, a casa onde morava é habitada por não-ele. É tudo, e chamamo-lhes o nada; mas nem essa tragédia da negação podemos representar com aplauso, pois nem ao certo sabemos se é nada, vegetais da verdade como a vida, pó que tanto está por dentro como por fora das vidraças.”
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego, p. 79 Companhia das Letras
Entrelinhas: A morte não liberta, apenas dissolve. Pessoa antecipa aqui sua filosofia da não-presença — o fim é apenas ausência de forma, não transcendência.
“Entre mim e a vida há um vidro tênue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe posso tocar.”
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego, p. 112 Companhia das Letras
Entrelinhas: A metáfora mais famosa do Livro do Desassossego. O vidro é transparência e barreira: o poeta vê tudo, mas não toca nada. É a tragédia de quem compreende demais.
“A minha vida é como se me batessem com ela.”
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego, p. 112 Companhia das Letras
Entrelinhas: A frase é brutal e perfeita. Pessoa transforma o sofrimento em unidade de medida — a vida o golpeia, e ele transforma o golpe em palavra.
“De repente, estou só no mundo. Vejo tudo isto do alto de um telhado espiritual. Estou só no mundo. Ver é estar distante. Ver claro é parar. Analisar é ser estrangeiro. Toda a gente passa sem roçar por mim. Tenho só ar à minha volta. Sinto-me tão isolado que sinto a distância entre mim e o meu fato.”
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego, p. 114 Companhia das Letras
Entrelinhas: O isolamento aqui não é solidão, é lucidez. Ver claro demais é separar-se. Pessoa cria uma imagem quase mística da consciência: o homem suspenso entre o alto e o nada.
“Cada qual tem o seu álcool. Tenho álcool bastante em existir. Bêbado de me sentir, vagueio e ando certo. Se são horas, recolho ao escritório com qualquer outro. Se não são horas, vou até ao rio fitar o rio, como qualquer outro. Sou igual. E por trás disso, céu meu, constelo-me às escondidas e tenho o meu infinito.”
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego, p. 137 Companhia das Letras
Entrelinhas: A embriaguez de existir é o remédio e a doença. Pessoa propõe um bêbado filosófico: aquele que se perde em si mesmo para suportar o próprio pensar.
“Ler é sonhar pela mão de outrem. Ler mal e por alto é libertarmo-nos da mão que nos conduz. a superficialidade na erudição é o único modo de ler bem e ser profundo.”
Fernando Pessoa. Livro do Desassossego. p. 231 Companhia das Letras
Entrelinhas: A definição mais bonita de leitura já escrita. Pessoa entende que ler é entregar-se à voz do outro — um sonho guiado por palavras alheias, onde também nos reconhecemos.



