Entre o amor e a liberdade: 11 frases de Noite e Dia, de Virginia Woolf

As 11 frases do livro Noite e Dia revelam a delicadeza com que Virginia Woolf transforma o cotidiano em pensamento.

Cada trecho parece respirar o mesmo ar que a Londres de 1917 — um tempo de chá, silêncio e inquietação feminina.

Publicado em 1917, Noite e Dia é considerado um dos romances mais lineares de Woolf, mas, sob essa aparente simplicidade, pulsa o embrião de tudo o que viria depois: a tensão entre amor e liberdade, tradição e desejo, rotina e revelação.

Neste post, reuni 11 frases do livro Noite e Dia que mais me tocaram — todas retiradas da edição da Editora Círculo do Livro (antiga e linda rs).

Podemos dizer que o livro são pensamentos que ecoam a busca por sentido em meio à vida comum — aquela que acontece, como o próprio título do livro sugere, “noite e dia”.

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Em cada frase de Noite e Dia, um lampejo da genialidade de Virginia Woolf: o que é viver, amar e existir em silêncio. Aproveite!

1.

O pior de tudo é que ela não tinha qualquer aptidão para a literatura. Detestava frases. Tinha, até, alguma natural antipatia por aquele processo de auto-exame, por aquele perpétuo esforço de entender os próprios sentimentos e expressá-los em palavras, de maneira bela, apropriada, vigorosa, coisa que constituía tão grande porção da existência de sua mãe. Ela, ao contrário, inclinava-se a calar; esquivava-se a expressar-se mesmo falando, quanto mais escrevendo. Como tal disposição era das mais convenientes numa família dada à manufatura de frases, eparecia indicar uma correspondente capacidade para a ação, ela fora, desde a infância, encarregada dos negócios da casa. Tinha a reputação, que nada em suas maneiras contradizia, de ser a mais prática das criaturas. Decidir os cardápios, dirigir os empregados, pagar as contas, conseguir que todos os relógios batessem à mesma hora e que as jarras estivessem sempre cheias de flores frescas eram tidos como predicados naturais dela. Mrs. Hilbery costuma dizer que isso também era poesia, só que às avessas. – p. 36

Entrelinhas: O irônico destino de uma personagem criada por uma das maiores escritoras do século XX: alguém que detesta frases dentro de um romance feito de frases sublimes. Woolf brinca aqui com a própria condição da mulher escritora — entre o silêncio e a expressão.

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2.

Carente de crença religiosa, era ainda mais conscienciosa com a sua própria vida do que o seria de outra maneira, examinando sua posição de tempos em tempos com muita seriedade. E nada a aborrecia mais do que surpreender um desses maus hábitos a minar sub-repticiamente a preciosa substância. De que servia, afinal de contas, ser mulher se não se conservasse fresca, e se não enchesse a vida com toda espécie de ideias novas e experiências? Assim, ela sempre se dava uma pequena sacudidela ao virar a esquina, e muitas vezes chegava à sua porta assoviando uma balada do Somersetshire. – p. 67

Entrelinhas: Essa passagem revela a Woolf feminista antes mesmo do manifesto.
A personagem recusa a fé como guia e escolhe a consciência. Faz da razão e da curiosidade o seu próprio credo. “Conservar-se fresca” é aqui o oposto da obediência: é permanecer viva, mentalmente desperta, fiel à própria inquietação.
E quando ela assovia uma balada ao chegar em casa, o gesto se torna símbolo de liberdade: uma mulher que, no silêncio da rotina, ousa existir à sua maneira.

3.

Era melhor, de um modo geral, arriscar o presente embaraçoso do que perder uma noite a sopesar desculpas e a construir cenas impossíveis com essa faceta intransigente de si mesmo. Desde que visitara os Hilberty, estava à mercê de uma Katherine fantasma, que vinha a ter com ele quando estava só, e lhe respondia como desejaria que ela respondesse, e que estava sempre ao seu lado para coroar as várias vitórias que eram negociadas cada noite, em cenas imaginárias, enquanto ia do escritório para casa, a pé, por ruas em que as luzes já se haviam acendido. Caminhar com Katherine em carne e osso serviria para nutrir esse fantasma com comida fresca, o que, como o sabem todos aqueles que alimentam sonhos, é processo necessário de tempos em tempos, ou para adelgaçá-lo a tal ponto que, depois disso, de pouco serviria. E essa também é uma mudança que todo sonhador acolhe com prazer. E todo tempo Ralph estava ciente de que a figura de Katharine não estava absolutamente representada nos seus sonhos, de modo que, ao encontrá-la, pasmava-se de que nada tivesse a ver com o sonho que fazia dela. – p. 79

Entrelinhas: Woolf está descrevendo a construção mental do amor, não o amor em si.
É o “teatro interior” — o espaço onde o desejo cria suas próprias versões da realidade.
O fantasma que Ralph alimenta é o mesmo que qualquer sonhador nutre: uma imagem idealizada, moldada pela solidão e pela falta.
E Woolf, com ironia delicada, comenta: “alimentar o fantasma com comida fresca” — ou seja, confrontar o sonho com a presença real, deixando-o enfraquecer ou ganhar nova forma.

4.

– Sem dúvida, é muito aborrecido que você só possa casar com um marido – refletiu Mrs. Hilbery. – Sempre pensei que bom seria que casasse com todo mundo que deseja casar-se com você! Talvez cheguemos lá, com o tempo (…). – p. 89

Entrelinhas: Com ironia brilhante, a personagem Mrs. Hilbery desmonta o ideal do casamento único e perfeito. Woolf transforma o riso em crítica: a mulher que ousa imaginar outro tipo de amor já está reinventando a liberdade.

5.

Você vive com seus inferiores – disse, entusiasmando-se indevidamente, como bem sabia, com o assunto. – E você se ajusta à rotina porque, de maneira geral, é uma rotina agradável. E tende a esquecer a razão de estar metida nela. Você tem o hábito feminino de dar excessiva importância ao detalhe. Você não vê quando as coisas são importantes e quando não são. E é isso a ruína de todas essas organizações. É por isso que as sufragistas nunca conseguiram nada todos esses anos. De que serve realizar quermesses e reuniões de portas fechadas? Você precisa de ideias, Mary. Agarre-se a alguma coisa grande. Não se importe em errar, mas não se perca em ninharias. Por que não abandona tudo por um ano, e viaja? Veja algo do mundo. Não se contente em viver toda a sua vida com meia dúzia de pessoas numa estrada. Mas sei que não o fará – concluiu. – p. 114

Entrelinhas: Ao ridicularizar o “hábito feminino de dar importância ao detalhe”, o personagem confirma o que Woolf quer mostrar: é no detalhe que o mundo se transforma. O que os homens chamam de ninharia, ela chama de vida — e é aí que o feminismo começa a respirar.
A fala carrega o tom dos discursos progressistas que pregam a liberdade, mas apenas a partir de um olhar masculino.
O conselho de “viajar, errar, ver o mundo” poderia ser um manifesto pela expansão da mente — não fosse o fato de vir de alguém que não reconhece as limitações impostas às mulheres.
O paradoxo é fascinante: o personagem convida Mary à experiência, mas a convoca sem compreender a estrutura que a impede de viver essa experiência.

6.

Todas as coisas se haviam transformado em sombras; toda a massa do mundo se fez vapor sem substância, em derredor da solitária centelha da mente, esse ponto ardente de que se podia justamente lembrar por ter cessado de arder. Havia acarinhado uma crença e Katharine a corporificava e deixava, agora, de corporificar. Não lhe censurava isso, não censurava nada nem ninguém. Via a verdade. Via a água barrenta e a praia deserta. Mas a vida é vigorosa; o corpo vive e era o corpo, sem dúvida, que ditava a reflexão que o fez mover-se. A gente pode, afinal, deitar fora as formas dos seres humanos e reter, no entanto, a paixão – que antes parecera inseparável do seu invólucro carnal. Agora essa paixão queimava no horizonte, como um sol de inverno a abrir no poente uma janela verde através de nuvens que se adelgaçam. Seus olhos estavam postos em alguma coisa infinitamente longínqua, remota. Com essa luz achava que seria possível caminhar; e com ela haveria de encontrar, no futuro, o seu caminho. Era tudo o que lhe restara de um mundo populoso e fervilhante. – p.137

Entrelinhas: Aqui, Woolf transforma o fim do amor em epifania.
O corpo se apaga, mas o pensamento continua — como uma centelha que insiste em existir.
É o nascimento da consciência moderna: o sentimento que sobrevive porque aprende a se transformar em ideia.

7.

Ralph manteve a porta aberta para ela, depois ficou com as mãos apertadas uma na outra no centro da sala. Seus olhos brilhavam e, na verdade, não saberia dizer se contemplavam sonhos ou realidades. Pela rua toda e, ainda, no limiar da porta, ou enquanto subia os degraus, seu sonho com Katharine o possuía. Na soleira da sala despedira-se dele, a fim de evitar uma colisão por demais penosa entre a sua ideia dela e o que ela era. E em cinco minutos ela havia enchido a concha do velho sonho com a carne da vida, e olhado com fogo pelos olhos do fantasma. Ele se via com espanto ali, entre as cadeiras e mesas da casa dela. E eram materiais sólidos, pois pôde pegar no encosto daquela em que Katharine estivera sentada. E, todavia, eram irreais; a atmosfera era de sonho. Reuniu todas as faculdades do seu espírito a fim de captar tudo o que minutos lhe pudessem dar. E das profundezas da sua mente surdiu, irreprimida, a certeza de que a natureza humana ultrapassa, na sua beleza, tudo o que os mais loucos sonhos podem oferecer como sugestões, alusões. – p. 183

Entrelinhas: O reencontro de Ralph e Katharine é o instante em que sonho e realidade se confundem.
Woolf escreve o amor como um fenômeno da consciência: a vida que enche o sonho de carne e o sonho que devolve sentido à vida. Lindo, lindo!

8.

Se o melhor dos nossos sentimentos nada significa para a pessoa mais envolvida neles, que realidade nos é deixada? – p. 198

Entrelinhas: Um dos questionamentos mais humanos de Woolf. Quando o amor não encontra eco, o que sobra é a dúvida — e a consciência de existir.

9.

Sente aí, Sally, e diga-me como é que consegue. Isto é, como consegue correr de um lado para outro com perfeita confiança na necessidade de suas atividades, que para mim são tão fúteis como o zumbir de uma varejeira retardatária. – p. 225

Entrelinhas: Ironia e introspecção se misturam. Woolf questiona o sentido das pequenas rotinas, das ocupações vazias que mascaram o desconforto de viver.

10.

Os mais extravagantes pensamentos ocorrem na travessia de ruas transbordantes de gente, quando aquele que passa não tem destino certo. É assim também que a mente compõe toda sorte de configurações, soluções e imagens, quando se ouve música atentamente. Da aguda consciência de si mesma enquanto indivíduo, Mary passou a uma concepção sobre a ordem das coisas em que, como ser humano, cabia-lhe, por direito, a sua cota. Teve, a meio, uma visão; a visão formou-se, depois minguou. Quisera ter um lápis e um pedaço de papel para dar forma a essa concepção que se propusera espontaneamente enquanto descia a Charing Cross Road. Mas, se falasse a qualquer pessoa, a concepção poderia fugir-lhe. A visão parecia conter as linhas mestras da sua vida até a morte, de uma maneira satisfatória para o seu senso de harmonia. Necessitava apenas de um persistente esforço de pensamento, estimulado curiosamente pela multidão e pelo barulho, para subir até o pináculo da existência e ver tudo lá do alto, disposto e armado de uma vez por todas. Seu sofrimento, enquanto indivíduo, ficara para trás. Desse processo, para ela repleto de esforço, com transições infinitamente rápidas e drásticas de pensamento, a levar de uma crista a outra, e formando, assim, a sua concepção da vida neste mundo, desse processo umas poucas palavras articuladas lhe escaparam, murmuradas entre dentes: — Não é a felicidade, não é a felicidade. – p. 226

Entrelinhas: Esse é um dos momentos em que Woolf transforma o simples ato de caminhar em revelação metafísica. A cidade (Charing Cross Road, viva, barulhenta, cheia de passantes) é o palco da epifania silenciosa de Mary. A rua funciona como metáfora da mente: movimento contínuo, ruído constante, lampejos que nascem e desaparecem. Algo que será explorando lindamente em Mrs. Dalloway.
Mary passa de uma consciência individual para uma percepção mais ampla da existência.
O conhecimento absoluto está sempre à beira do esquecimento.
“Não é a felicidade” — é o entendimento de que a consciência vale mais que o contentamento.
Woolf transforma o passo comum em pensamento filosófico: cada rua é um caminho para dentro.

11.

Às vezes, sentia que era necessário, para sua própria existência, libertar-se do passado; ou que o passado deslocara completamente o presente, de modo que, ao retomar a vida comum depois de uma manhã inteira entre os mortos, o presente se revelava uma composição rala e inferior. p. 239

Entrelinhas: Ao sentir o passado ocupar o presente, a personagem percebe que viver é libertar-se. Woolf transforma a memória em fronteira: ou se atravessa o que foi, ou se deixa de existir. O presente só se torna real quando deixamos de viver entre os mortos.

Noite e Dia é menos sobre o amor do que sobre o despertar.
Woolf transforma o cotidiano em consciência, o silêncio em pensamento.
Entre o dia da razão e a noite do desejo, nasce a mulher que começa a existir por si mesma —
não em busca da felicidade, mas de lucidez.

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Referências:
Edição Noite e Dia em inglês, disponível no site do projeto Gutenberg

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