No auge da cena espiritualista que se espalhou no final do século 19 e se estendeu pelo inicio do século 20, um espírito, mais do que qualquer outro, intrigou médiuns e expectadores em diversas partes do mundo. Do Reino Unido aos Estados Unidos, de Cesenatico a São Petersburgo o espírito de Katie King manifestou-se e ganhou eco.
Pouco se sabe sobre a vida de Katie King. Muito se registrou sobre seu fantasma. Suas manifestações, algumas vezes simultâneas, outras vezes polêmicas, garantiram-lhe a fama internacional e o entretenimento num período ávido por indícios do sobrenatural.
A Ghost’s Story é um romance em tom biográfico sobre a trajetória desse famoso espírito. Lorna Gibb, biógrafa de Lady Hester Stanhope e Rebecca West, pesou a mão ao apresentar evidências, personagens reais e fatos históricos em torno de Katie, um trabalho que somente um biógrafo poderia fazer com tanta propriedade. E, se por um lado os excessos de detalhes dão um ritmo lento a primeira metade do romance, são também eles que preparam o terreno para uma história que surpreende e comove.
A história é contada a partir de fragmentos dos manuscritos de Katie e recentes textos atribuídos a ela. Esses textos, misteriosamente impressos durante a noite, foram encontrados em uma livraria na Itália (um livraria que realmente existe e se chama Katie King). Dando forma a narrativa e abrindo os pontos centrais do romance acompanhamos notas acadêmicas e emails trocados entre pesquisadores que investigam os limites entre o real e o imaginário nessa história. Questionamentos que você se fará muitas vezes ao longo do livro.
Para desespero do leitor, a autora apresenta e se desfaz de interessantíssimos personagens, sem qualquer sinal de remorso, deixando-os a margem da história de Katie, que narra tudo como se enxergasse apenas o essencial de cada um, como se tudo o mais fosse corriqueiro e entediante. O que faz com que Katie manipule seus médiuns, boicote suas próprias aparições e interfira deliberadamente no mundo dos vivos até se apaixonar platonicamente por um deles: a figura real de Robert Dale, político e espiritualista que Katie salva da morte certa na infância e que tragicamente termina seus dias num manicômio.
A cenas são lindamente construídas fazendo juz aos pormenores góticos presentes na arte e na atmosfera da Era Vitoriana. Obviamente, o sobrenatural também é descrito com o mesmo cuidado em objetos que levitam; detalhes como vozes e línguas que Katie usa para manifestar-se em diversos países e para diferentes públicos; sexy médiuns escolhidas para seduzir ou dar a luz a ectoplasmas. Como é de se esperar de um fatasma como Katie, truques e farsas são também cruamente desmascarados para o leitor, que assiste a tudo com a visão privilegiada que uma autobiografia pode dar.
A Ghost’s Story é principalmente isto: uma tentativa de extrair o essencial da existência seja ela humana ou não-humana. O essencial que transcende os planos e ao mesmo tempo é absorvido por eles. Como uma onda que se levanta do mar e a ele retorna, porque dele é feito – o que há de tão único e de tão medíocre no que diferencia o “eu” do “você”. Somos todos Katie King tentando resonar num mundo lânguido, tentando fazer sentido.
Publicado pela Granta, no Estados Unidos e no Reino Unido, mês passado, A Ghost’s Story, 336 páginas, é o primeiro romance de Lorna Gibb. Ainda sem tradução para o Português.