Quando um livro propõe a oportunidade de conhecer uma história por meio da ficção (a mentira bem contada, a história inventada) por mais triste ou chocante que a obra seja, permite que o leitor use uma armadura, um escudo, uma bolha, que o deixa seguro, como se as balas de um revólver não pudessem machucar a fundo. Mas o que acontece quando lemos uma história real, sobre um mundo real, com uma personagem real? É sobre isso o livro Quarto de Despejo.
Escrito por Carolina de Jesus (1914 – 1977), publicado em 1960. Brasileira, escritora, favelada, negra. Queria sair da favela, queria uma vida melhor para os filhos, não queria casar, não queria um marido; queria viver de suas palavras, queria ser escritora.
Quarto de despejo – a história de como o livro chegou até à burguesia
Um jornalista, Audálio Dantas, conheceu Carolina na Favela do Canindé, em São Paulo e promoveu a escritora. Assim, o Brasil e alguns outros países (o livro foi traduzido em mais de 13 línguas), puderam conhecer uma das grandes vozes da literatura brasileira.
O livro é um diário da vida na favela. O leitor irá conhecer detalhes da vida da própria escritora, mas também a dinâmica social de uma favela, o jeito que as pessoas se relacionam, como são formados os laços de amizade, como uma briga começa, as diferenças entre uns e outros, o tratamento dado a quem vem de fora e a luta diária por conseguir comida e água.
“Esquentei o arroz e os peixes e dei para os filhos. Depois fui catar lenha. Parece que eu vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a felicidade.” (p. 72)
Carolina não queria pedir dinheiro em algum semáforo, assim, ela era uma catadora de lixo. Procurava todos os dias por qualquer coisa que pudesse revender: vidros, papéis e metais eram os seus maiores objetivos diários. Acordava muito cedo para pegar água. Ela gostava de ser a primeira para não ter que conversar com as outras moças da favela, que não gostavam dela, que sentiam raiva por ela estar escrevendo um livro, por ser uma mulher que não desejava um marido, que se sentia bem – apesar de tudo – com o seu pequeno teto (de papelão) e os três filhos.
A luta pela comida
Todos os dias. Todos os dias a luta pela comida. Isso fere o leitor diretamente. Não é uma suposta história que alguém contou, sobre outra pessoa, que contou para outra, etc. É uma favelada contando diretamente para quem lê. A sua dor, o seu nervosismo, a sua depressão, o seu desespero não chegam até nós com um filtro bonito, poético ou até mesmo suave. É forte. É chocante. É dolorida a constante repetição dos dias de Carolina e o seus filhos. Todos os dias é preciso comer, mesmo que seja o alimento encontrado no lixo.
“(…) os meus filhos vieram dizer-me que havia encontrado macarrão no lixo. E a comida era pouca, eu fiz um pouco de macarrão com feijão. E o meu filho João José disse-me:
– Pois é, a senhora disse-me que não ia mais comer as coisas do lixo.
Foi a primeira vez que via a minha palavra falhar.” (p. 35)
Carolina e sua lucidez
Carolina aprendeu a ler e escrever com uma professora que disse a ela para registrar tudo o que sentia. Assim nasceu a escritora. E o livro Quarto de Despejo foi mantido exatamente como ela escreveu, sem nenhuma correção gramatical, o que dá mais força à história, mais realidade, mais choque.
Dessa forma, uma das características da escritora é a lucidez. Em meio ao caos da vida na favela, Carolina consegue compreender a sua própria condição, das pessoas que vivem no mesmo mundo que ela, da política do país, a corrupção, o racismo etc. O título, Quarto de Despejo, é uma metáfora para a própria favela. A burguesia vive na sala de jantar, os pobres, no quarto de despejo, que ninguém quer ver, ninguém quer enxergar e, se está muito bagunçado, é melhor fechar a porta.
“…Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondiam-me:
-É pena você ser preta.” (p. 58)
Portanto, conhecer Carolina de Jesus, conhecer a sua vida e a sua obra é um exercício de permanecer com os olhos abertos e encarar o problema de frente. É duro estar no conforto de um lar, longe da favela e saber que lá ainda existem tantas Carolinas. Eu não posso torcer para que todas sejam brilhantes como Carolina de Jesus foi, pois aí estarei entrando na meritocracia, que é tão cruel.
Mas eu desejo que todas as mulheres possam conquistar a própria liberdade, que não dependam de ninguém e que possam, sem medo, contar a própria história – seja como escritora ou por meio de qualquer profissão. Foi o que Carolina de Jesus deixou intrínseco em sua obra. Uma mulher que possa contar a própria história, sem ser pela voz de outro, porque a crueza de ser mulher só pode ser revelada por uma.
Quarto de Despejo e Um teto todo seu
Virginia Woolf, no livro Um Teto Todo Seu, informa que, para escrever, uma mulher precisa ter um teto todo dela e dinheiro. Carolina de Jesus, talvez, tenha sido a primeira mulher brasileira a lutar por isso, seguindo, sem querer, o que Virginia Woolf deixou registrado no início do século XX.
Ainda sobre Virginia Woolf: ela fala que cada mulher deve escrever o que quiser, do jeito que ela quiser, mas que é preciso escrever. Ela cria uma história ficcional sobre a irmã de Shakespeare, que poderia ser tão genial quanto o irmão, mas que por ser mulher, não exerceu sua profissão e acabou se matando, louca, sozinha.
Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil porque eu lia a história do Brasil e ficava sabendo que existia guerra. Só li os nomes masculinos como defensor da pátria. Então eu dizia para a minha mãe:
— Porque a senhora não faz eu virar homem? Ela dizia:
— Se você passar por debaixo do arco-íris você vira homem.
Quando o arco-íris surgia eu ia correndo na sua direção. Mas o arco-íris estava sempre distanciando. (p. 48)
Então, para Virginia Woolf, as mulheres deveriam escrever por ela, pela irmã de Shakespeare. Acredito que nós, brasileiras, podemos escrever por Carolina de Jesus, uma mulher que quebrou as paredes do seu quarto de despejo e conquistou a liberdade de escrever a própria história, mesmo em condições assustadoramente precárias, mesmo com a fome batendo à porta todos os dias.
Respostas de 2
Coincidentemente, terminei esse livro há pouco. Ao final cheguei à conclusão de que Quarto de Despejo não é uma leitura, é uma experiência!
É isso mesmo Pollyana. A gente se transforma em outra pessoa no final da leitura.
Um livro essencial para a vida! Bjos!!