Eu tinha quinze anos e escrevia uma poesia meio tosca. Eram poemas curtos, engraçadinhos, quase imitando o Leminski e outros escritores de “poemas-pílula”. Hoje, não gosto de nenhum deles porque os acho imaturos, mas até que vejo alguma beleza nisso tudo. Uma beleza cheia de espinhas, dúvidas, cabelos desgrenhados e roupas que não servem direito às mudanças de seu corpo, é óbvio. Ser adolescente não era das coisas mais fáceis. Tudo importa tanto – vocês sabem do que eu estou falando. Mas é nessa proporção estranha, que não cabe direito em si, que decolam os desejos de experimentar. Ser adolescente, dar umas beijocas, fazer trancaço no portão da escola, comer comida de qualidade duvidosa em lugares de qualidade duvidosa, seguir a pira dos amigos e inventar umas piras novas (quase sempre novas pra gente, pois o mundo inteiro já conhecia há um tempo).
Foi nessa época que decidi me auto publicar. Não, não foi glamouroso, não bombou na internet, não teve hashtags e financiamentos e entrevistas. Mas foi divertido. De manhã, fazia o ensino médio na ETESP, no Bom Retiro, e de tarde ia com as amigas para o curso técnico em outra escola pública, no Brás. Estudávamos comunicação visual e tínhamos computadores top de linha à disposição para aprendermos a mexer com os programas básicos. Me empolguei com a coisa – adolescente, vocês sabem – e fiz a capa do meu livro. Selecionei uns poemas, fiz à mão as páginas do miolo e tratei no computador. Imprimia a capa na papelaria perto de casa e o miolo, na xerox da escola. Cortava tudo com estilete (às vezes uns nacos dos dedos iam junto de brinde), montava e vendia para pessoas próximas por dez dilminhas. Era uma satisfação. Contei no Facebook e algumas pessoas que moravam longe pediram um exemplar. Ir ao correio pegar fila, escolher o envelope, endereçar o remetente no lugar certo, receber mensagens carinhosas uma semana depois, quando chegava na porta da destinatária, tudo isso era emocionante. Parecia uma prova concreta de que estava crescendo, não só as palavras, mas eu mesma.
Hoje, se passaram cinco anos. Saí da escola, entrei na universidade, comecei a trabalhar, viajei por aí e dormi no chão algumas vezes. Agora, aos vinte, publiquei um livro novamente: Constelações. Os poemas me representam mais, cresceram junto comigo, são sínteses de um dia-a-dia que germina. O movimento de mulheres, o movimento do mundo, a independência, o amor e a descoberta dele em outras pessoas, a falta do óbvio. Dessa vez, com uma editora, não precisei falar com gráficas, cortar papel, fazer refile. Ainda assim, talvez por essa mania de querer cuidar de tudo, pedi por favor por favorzinho a tarefa do projeto gráfico. Faz pouco mais de um mês.
A editora, mesmo dedicada, é pequena e independente. Nesse meio tempo, precisei me virar muito e, por isso, conversei com muita gente absurda de boa e me diverti desenhando corações e gatinhos nas dedicatórias para tantas pessoas amigas. Neste processo, também venho percebendo com maior nitidez as limitações e contradições do mundo da literatura, este que fala tanto de coisas bonitas mas reproduz uma lógica cruel ao delimitar quem são as pessoas grandiosas o suficiente para fazer parte disso. Como se houvesse cerca nos mundos que não pertencem a ninguém, porque são inventados. O ponto de vista de homens brancos, mais velhos e da elite é o que reina – ainda. Ao mesmo tempo, a solidariedade feminista e a rede de apoio entre mulheres fortalece uma outra narrativa, que é feita no cotidiano, pelo cuidado, pela parceria, pela presença. Hoje vejo gente batalhando por uma publicação que faça sentido, que sirva ao que veio – que fortaleça. Isso nem sempre vem dentro dos moldes tradicionais da coisa. Às vezes vem na forma de livrinhos xerocados e refilados em casa, não importa. Nada no mundo tira a relevância das palavras que brotam nos caminhos das mulheres.
em nome da ordem
amor
é coisa de mulherzinha
mas também a solidão
coisa de mulherzinha feia e/ou carente
bem como as lágrimas, a dança, os backing vocals:
todos coisas de mulherzinhas,
várias delas.
a poesia
é coisa de mulherzinha
os livros de receita
o preparo do almoço
a louça suja
todas as etapas são
coisas de mulherzinhas
e somente delas.
a mistura do vermelho e do branco
que estampa objetos diversos
e roupas de bonecas
é coisa de mulherzinha.
a ponta dos dedos,
o manuseio,
a agulha e a linha,
são meticulosamente coisas
de mulherzinha.
o medo é coisa de mulherzinha
o trauma é coisa de mulherzinha
e as dores
e as ervas.
tudo indica que não nos cabe
a palavra plena e primeira.
tampouco os superlativos:
expressamente proibidos
em nome da ordem.
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