Peri Pane é tipo um Tom Zé paulista: performer, compositor, interprete, atuante na área social e urbana, acadêmico das artes, empreendedor, um faz tudo o tempo todo; porém comedido, como só poderia ser um artista, sobretudo independente, de São Paulo, não expansivo, como são os que vêm da Bahia de Tom Zé.
“Canções Velhas Para Embrulhar Peixes”
Para nosso Século XXI, parece já em atraso (o CD foi gravado em 2012), mas, mesmo com essa defasagem temporal, que na verdade é bem pouca, sobretudo pra quem, como eu, é do século passado, vale a pena citar e refletir sobre “Note”, sobre “Canções Velhas Para Embrulhar Peixes”, sobre Peri Pane, sobre música brasileira, sobre poesia brasileira e sobre o futuro delas (música e poesia).
Antes de lançar sua carreira solo, apesar de estar desde sempre ligado à música, ficou conhecido como “Homem Refluxo” ao vestir uma capa plástica onde “guardava” seu lixo enquanto usava a cidade. Também tocou (e ainda toca) com a Banda Odegrau.
Em um de seus encontros em projetos sociais, deu de cara com o coletivo “Dulcineia Catadora”, de onde tirou a ideia de vender os CDs com capa de papelão reciclável, que rendeu, inclusive, uma canção no álbum: “Dulcineia”. Outra grande ideia foi vender os CDs em muitas alternativas de cores de capa, ficando para o consumidor escolher aquela que mais lhe agradasse, dando assim uma sensação de objeto ‘mais’ único.
O disco é totalmente intimista e reflexivo, mas sem deixar de lado, claro, a apreciação estética geral: beleza na musicalidade, na literatura, na fisicalidade do trabalho. Todas as canções flertam com o que de melhor se faz como música brasileira, música clássica e música independente: tem cavaquinho no Tango, tem acordeão no Blues, tem piada no Fado e tragicomédia no Xote.
Peri Pane compôs em parceria com o poeta arrudA e se fez acompanhar dos músicos Marcelo Dworecki e Otávio Ortega nas teclas e nas cordas. Todas as letras têm uma mistura muito especial de riso e melancolia, que faz dos autores uma continuação direta da poesia que faziam os mestres modernistas: Drummond, Oswald, Bandeira e outros. É o tal do poema piada renascido; renascido porque vem novo e não de novo; vem novo para esse tempo novo, mundo novo. “A Morte Dos Ácaros”, por exemplo, além do título inusitado, traz na piada um sentido tão profundo pros nossos tempos que é capaz de fazer parar qualquer andante acelerado pra que possa pensar na proposta imagética oferecida:
“O Vaporeto não vai limpar a minha vida
(Peri Pane – Canções Velhas Para Embrulhar Peixes Vol. 1- Traquitana; São Paulo, 2012)
A minha vida vale mas que a morte dos ácaros”
Ou seja, o mundo tá de cabeça pra baixo, mas não é comprar, à credito um produto doméstico, que vai melhorá-la; o crédito, aliás, pra ter de volta a vida própria, seria impagável.
Depois, em “Dulcineia”, que antes se chamou “Quixote”, logo, um “Xote bom”, retoma a jornada do cavaleiro andante pra dizer que hoje “os moinhos” e “os gigantes” são “outros”, mas que ainda devem ser enfrentados com valentia e fé, mesmo que vãs. Dom Quixote, o valente cômico, seria o ideal de luta para esse novo atuante e poeta para o século XXI: engraçado, falho, mas sério no seu nobre propósito.
Em “Crânio”, a agudeza do plano de revolução e a acidez da anedota alcançam o clímax; ao afirmar que não é “gênio”, mas tem “crânio”, o eu-lírico põe na mesa nossa condição de terceiro mundistas: temos, em nós, as mesmas possibilidades que qualquer humano em qualquer canto, mas não somos devidamente estimulados. No fim, invertendo a ordem das palavras nos versos, deixa ainda mais clara sua intenção:
“Eu tenho crânio, mas não sou gênio;
(Peri Pane – Canções Velhas Para Embrulhar Peixes Vol. 1 – Traquitana; São Paulo, 2012)
um país pobre não pode enriquecer urânio”
Veja só que genial ponto de virada: diz que tem o que é preciso (eu tenho crânio), mas que não teve estímulo (mas não sou gênio), pois, no terceiro mundo, trabalho intelectual não tem valor nem necessidade (país pobre não pode enriquecer urânio), isso é lá com homem branco do Hemisfério Norte.
É um disco pra se ouvir sentado, relaxado, sem compromisso, pra que se possa dar atenção a todos os pequenos detalhes semióticos das canções, separadamente e em conjunto.
“Note”
É a canção mais ‘deprê’ do álbum, sobretudo por causa do tom melancólico dado pelo andamento e arranjo da música (me lembrou muito as primeiras canções de Radiohead):
“Note
(Peri Pane – Canções Velhas Para Embrulhar Peixes Vol. 1 – Traquitana; São Paulo, 2012)
o que a gente nutre
um dia desses repercute.
Note,
mas não se assuste,
toda noite tem seu lustre;
o que não é pra já talvez seja pra Júpiter,
tempo há de ter!
Note
o que a gente nutre
um dia desses repercute,
reverbera.
Tome nota, escute!
Toda espera tem seu ajuste.
Mesmo assim, há ainda uma comicidade bem sutil nas metáforas usadas pelo autor. Em “Note, / mas não se assuste, / toda noite tem seu lustre”, por exemplo, um pouco forçado pela sonoridade das palavras, é verdade, mas se percebe a graça do lustre colocado como aquilo que no futuro irá acabar com a “noite” que assusta; normalmente, usa-se imagens como a da Lua, a de um farol, a de estrelas, a do Sol ou até as de fogueiras pra representar o fim da escuridão, mas aqui ele preferiu um lustre, objeto bastante interno e muito mais ligado a intimidades particulares (e humanas), o que, talvez, seja o que realmente pretendia expressar.
Nos versos seguintes: “o que não é pra já talvez seja pra Júpiter, / tempo há de ter!”, novamente aproveitando o gancho da sonoridade, no lugar de dizer “o que não é pra já” talvez seja pra depois (ou algo parecido) prefere usar “Júpiter”, o que acaba por tirar o ouvinte do comum nessa nova imagem sideral. Assim, o inusitado, além de prender a atenção, por conter um certo modo cômico, também amplia a significação: o que era pra ser num depois passa pra um espaço-tempo muito mais largo, lá pros lados de “Júpiter”. Completando, reafirma que “tempo há de ter!”, ou seja, há que se ter calma, afinal o tempo é tanto, que se pode chegar a um planeta distante.
No fim da letra, depois de algumas repetições, bem colocadas, o compositor também usa “Toda espera tem seu ajuste” (sonoridade de novo), usando “ajuste” no lugar de “fim”, depois de ter “repercute” e “reverbera” nos versos anteriores, referentes a produção de som (aqueles que conhecem o trabalho com música sabem que, nela, tudo é uma questão de “ajuste”), quer dizer, todas as partes musicais ajustadas harmonicamente resultam no som que agrada, que o ‘fim’ da música. Interessante também é que a canção pode também fazer uma brincadeira com a palavra “Note”, o mesmo que observar algo com atenção e “Note”, no inglês, nota musical, por isso “o que a gente nutre (…) repercute”. Outro jogo válido também poderia ser uma relação com “not”, não em inglês, por causa da sonoridade; isso também explicaria o porquê da espera e do deixar pra um tempo futuro: porque agora NÃO seria possível.
O videoclipe reforça a ideia de escuridão e de ‘não’, de coisas que não acontecem, mas também não se tornam impossíveis. Com imagens desconexas e noturnas, ou quase noturnas, do interprete, Peri Pane, e de Bárbara Eugênia, esposa do músico, não se pode dizer ao certo se é um reencontro ou uma separação; é perceptível somente o querer e a negação, de ambos, o que os forçaria a esperar o tal “ajuste”.
Enfim: texto, letra e música levam o ouvinte pra um ambiente sombrio e obscuro, onde não acontecem fatos, onde o querer está em suspensão, mas não terminado. A sutileza da letra exige que o ouvinte a “Note” com muita atenção pra não perder a singeleza cômica do dito e do não dito, que é o fator esperançoso na canção. Sem bom humor, não há esperança, sobretudo hoje.
Este vídeo canção poema, com obscuridade e com comicidade, aponta um futuro pra arte literata no Brasil, já indicado lá em 22: o menos é mais, o estrangeiro deve ser encorporado, o brasileiro deve ser valorizado, a realidade é triste, as pessoas são engraçadas, a arte nos dá esperança.
Boa audição!