A diferença é enorme. Em sua História Concisa da Literatura Brasileira, Alfredo Bosi dedica três páginas à Clarice Lispector. À outra Lispector, a Elisa, três linhas. A diferença se justifica. Sobre a obra de Clarice debruçaram-se uma infinidade de críticos e pesquisadores. Sobre a de Elisa, poucos. Nélida Piñon nos dá, em pouquíssimas palavras, uma imagem da irmã mais velha de Clarice, a quem conheceu: “Uma mulher severa, circunspecta e que terá sofrido por não lhe reconhecerem o talento que se julgava concentrado na irmã caçula”.
Teria mesmo Clarice concentrado todo o talento literário da família? Ao leitor curioso só resta uma saída: ir aos livros. Ou ao livro, no meu caso. Numa das minhas andanças por sebos encontro o O muro de pedras, provavelmente o livro mais bem recebido de Elisa pela crítica da época, ganhador de um prêmio literário e publicado em 1963.
Marta, a personagem principal, tem um problema: a liberdade. Problema incomum. Geralmente a liberdade é uma solução ou desejo ardentemente esperado. E assim também parecia à Marta. Na beira dos seus quarenta anos, passa a experimentar uma liberdade jamais sentida. E como não havia sido exatamente feliz até então, achava que ela lhe seria boa.
A mãe de Marta, Eunice, tão logo o marido morre parte para encontrar um outro homem. Marta, já casada e infeliz, decide romper com seu marido. Subitamente só, Marta vê a oportunidade de enfim se aprofundar em si mesma, descobrir quem era, o que queria e fazer e viver as grandes coisas que sonhara.
Logo descobre que sua liberdade era uma prisão. Ou talvez uma bolha. Uma bolha em que ela ficava bem no centro, com todas as possibilidades abertas a sua frente. Paradoxalmente, essa infinita potencialidade era paralisante. O que fazer, afinal? Que caminho seguir? Como descobrir o que eu quero?
Água viva (Clarice Lispector): a orgíaca beleza confusa
O drama de Marta talvez seja um drama burguês. De família de classe média, dona de alguns bens (herda uma granja), ela dispõe de certo conforto material que faz com que ela não tenha urgência em ganhar a vida. Mas isso explica pouco. Há algo de mais íntimo, um desajustamento e uma indecisão que impedem Marta de achar seu caminho. Diz ela:
As outras pessoas sabem o que querem; apóiam-se nos seus desejos, e isso lhes serve de sustentáculo. Ao passo que eu sempre fui indecisa. Era só lançar-me para a frente, e em pouco me perdia irremediavelmente, e irremediavelmente ficava desfigurada.
Livre e só, Marta identifica em si mesma, com muito consciência, apenas sua indecisão e sua inabilidade em levar a vida. Aos poucos, essa liberdade, tão desejada, passa a ser excessivamente solitária. É o impulso que Marta precisa para enfim sair de sua bolha. Dá início então ao seu movimento mais constante, um movimento pendular que a leva a balançar entre a necessidade de isolamento e a de contato com o mundo.
Marta então dirige-se a superfície de sua bolha, tentando uma saída, um novo elo com o mundo. Seu elo é Ercília, sua vizinha. Marta via essa amizade como um ato de humildade seu. Via Ercília como uma mulher falante e de mentalidade estreita. Será que Marta sentia-se superior aos outros e isso a impedia de viver uma vida comum? Ou sentia-se, ao contrário, inferior aos outros, incapaz até mesmo da mais comum das vidas? A primeira opção parece ser mais correta, mas acredito que no íntimo Marta, como sempre, balançava entre esse dois extremos.
Ercília faz companhia a Marta e lhe dá algo parecido com uma vida social. A vizinha lhe apresenta Marina, que lhe apresenta Maurício. Começam a ter um caso. Caso que dura pouco. Maurício não quer nada sério e Marta não quer a angústia de esperar por suas visitas e decisões. Antes mesmo de romper a superfície de sua bolha, retorna ao seu centro solitário e ocioso. Mais uma vez só, decide abandonar a cidade e ir cuidar da granja herdada da família.
Mais uma fuga para uma mulher que fugia o tempo todo. Marta percebeu-se incapaz tanto de imiscuir-se à vida comum como de suportar a solidão. Não tinha instrumentos nem para dar o passo inicial para a vida nem para achar em si o que queria. Quando a vida ou a solidão pareciam muito ameaçadoras, ela fugia. Reflete, então:
Estou sempre começando, para em seguida terminar, e recomeçar de novo, os elos partidos, um não chegando a emendar no outro.
O padrão se repete na granja. A princípio Marta adora a nova vida. Sua vida anterior, aquele mundo de angústias e apreensões ficara para trás. Agora vivia a vida ativa da granja, com seus afazeres cotidianos e em meio aos funcionários. Tinha agora uma aparência de vida comum, de rotina, de trabalho. Não demora muito, porém, para que seu pendor para a solidão e sua inabilidade social se manifestem.
Antes mesmo de se sentir plenamente integrada na vida da fazenda, Marta começa a ver as diferenças existentes entre ela e seus funcionários, imigrantes italianos. Por Bruno, o administrador da fazenda, Marta põe seu movimento pendular em ação e sente, ao mesmo tempo, atração e repulsa:
Mas esse fascínio ( por Bruno) logo se desfazia ante o seu linguajar rude, o seu modo de falar demasiado físico, feito quase todo ele de gestos e de mímica – os lábios rosados e um tanto cheios destacando as palavras, modelando-as com um jeito excessivamente direto, quase impudico, enquanto as mãos acompanhavam as palavras com um friccionar dos dedos num gesto nervoso e incômodo.
Atração e repulsa, aceitação e negação. Marta novamente sente a necessidade de isolamento. Constrói uma cabana no meio do bosque, só para si. Seu único contato externo era a jovem Ana, irmã de Bruno, que lhe levava comida todos os dias. Mas logo sua solidão já era excessiva e o pêndulo começava a voltar, com força, para o lado oposto. Precisava do mundo. Um novo elo. Um mais íntimo e duradouro do que foram sua mãe, seu ex-marido, Maurício. Um que lhe desse, enfim, a plenitude tão desejada. Que cessasse as incertezas. Que estancasse esse pêndulo inquietante. Precisava de um filho.
Quem outro para pai senão Bruno? Tão logo transam, Marta expulsa Bruno de sua cabana, rude e friamente. Sente aí quase o tocar de extremos, o mais curto movimento de seu pêndulo interno, a atração e a repulsa quase simultâneas. E se assusta com sua liberdade:
(…) assustou-se com o ilimitado da liberdade que se dera, e com a solidão incomensurável que se contém na liberdade.
Não é difícil prever que Carlos, o filho de Marta e Bruno, não lhe trará plenitude ou paz. Não dará Marta, em suma, à si mesma. Mesmo em seus momentos mais serenos, mais em harmonia consigo, com Bruno, com o filho e os demais funcionários, algo nela ainda se agita, aquela velha inquietude que se infiltra nas brechas
de seu ser para lhe acusar de levar uma vida que não é mais que pura inutilidade. As velhas questões continuam a martelar a cabeça de Marta: onde errei? por que não sou como os outros? qual é minha culpa essencial?
A culpa talvez tenha inclinado Marta a pensamentos religiosos. Que foram, aliás, uma das suas motivações para desejar ficar sozinha. Só na solidão encontraria Deus? Seria essa sua busca incessante por algo, por si, a própria busca por Deus? Encontrara nesse longo caminho de idas e vindas alguma lição? Vejamos:
(…) que lição extraíra de suas incessantes buscas?- Apenas esta: a de que não se pode ir além de si mesmo.
Outra:
“Ir de renúncia em renúncia, estaria nisto a salvação? Entregar-me, ceder de todo, será isto? Sim”.
Só se renuncia aquilo que se tem. O que tinha Marta? Uma granja, um filho, angústia, medo, solidão. Pensa em vender a granja. Seus funcionários são contra. Seria justo com eles pensar tão somente em si mesma? Na sua ânsia por encerrar mais um capítulo de sua vida, que já lhe era incômodo, valeria passar por cima de qualquer outra vontade alheia a sua?
A vida, afinal, era seu muro de pedras. Muro impenetrável para Marta. “Viver era-lhe agora o mesmo que arranhar as pedras de um muro: os dedos sangravam sem que ela conseguisse inscrever nele o mais leve indício de sua dor.” Na beira do abismo, metafórica e literalmente (pensava em se matar), Marta arrisca uma última reflexão, talvez a decisiva:
E nesse momento ela compreendeu que o que sempre lhe faltara fora grandeza. Ela jamais tinha sabido deixar-se humilhar, sempre inaceitando, resistindo sempre. “talvez dessa resistência se tenha originado todo o meu sofrimento”, pensou.E nesse momento tinha como certo que somente através da humilde aceitação de si mesma e dos outros, é que se consegue escapar daquele vazio que, se não ungido pela graça, aterroriza; que somente no dia em que estabelecesse uma conexão entre ela e o próximo, entre ela e o mundo, através de uma aprendizagem humilde e um consentido trabalho de obediência, como quem tece u´a manta, fio a fio, ponto por ponto, sem pressa da tarefa de cada dia, de cada hora, que só então cessaria o seu sofrimento, porque nesse instante via tão claro como se todos os anos vividos se tivessem somado para conduzi-la exclusivamente a este reconhecimento do que era, do que forçosamente teria que ser.
Humilhar-se. A humilhação, idéia tão cara ao cristianismo, seria a chave para a salvação de Marta? Renunciar a tudo e entregar-se ao ser transcendente? Quem sabe? Mas antes era preciso furar de vez a bolha, sair dessa oca liberdade e ligar-se aos outros. Deixar de ver as pessoas a sua volta como obstáculos a sua plenitude a passar a vê-las como participantes dela. Renunciar, enfim, um pouco da sua liberdade e solidão, de seu medo e angústia, para ganhar um pouco de vida, de afeto, de sentido.
Marta achava que o grande pecado de sua vida era o desperdício. Tinha uma vida e a desperdiçava. Nós temos duas Lispectors. E são justas todas as atenções que Clarice recebe. Justíssimas. Mas negligenciar a prosa sensível, tocante e bem delineada de Elisa me parece, no mínimo, um desperdício. Um pecado.
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Cahoni Chufalo, formado em Letras, com pós-graduação em critica e curadoria de arte. Fez a curadoria das exposições Memória Imprensa, em Ouro Preto e Figuras Recorrentes, em Novo Hamburgo.