1949. Fazia pouco tempo que a Segunda Guerra Mundial tinha posto fim à poesia. Seria temporário? Ninguém tinha essa resposta. O mundo se esforçava por juntar seus pedaços após Auschwitz. A sensação era de que os campos de concentração tinham colocado um ponto final na humanidade. O tão sonhado progresso científico e tecnológico tinha se transformado num pesadelo. Mas um pesadelo que não parecia ter fim: agora era o grande cogumelo de Hiroshima que assombrava corações e mentes do pós-guerra; o temor do extermínio total. O mundo estava rachado em dois, ambos fechados em suas ideologias e armados; e a população se esgueirava em abrigos nucleares. Se no começo do século XVI, quando os homens puxaram pra si a história e se auto-proclamaram livres das trevas, o futuro se mostrava como Utopia; no século XX, ele ganhou tons sombrios e se distorceu até sangrar. O futuro não estava mais por fazer, como sonhou o homem moderno. No horizonte contemporâneo, o mundo era distópico.
1984. “era um dia frio e luminoso de abril, e os relógios davam treze horas. Winston Smith, queixo enfiado no peito no esforço de esquivar-se do vento cruel, passou depressa pelas portas de vidro das Mansões Victory, mas não tão depressa que evitasse a entrada de uma lufada de poeira arenosa junto com ele”.[1] Quase três décadas após o fim da Segunda Guerra mundial, os homens ainda estariam lutando contra um vento cruel. Em vão. A poeira arenosa seguiria junto com ele.
George Orwell não chegou a viver em 1984, mas assim o imaginou em 1949. E foi sua última imaginação, já que morreu um ano após o lançamento de seu grande clássico 1984: um marco do século XX. Para o cinema foram três adaptações, a última em 1984.[2] Sem dúvida, é sua obra mais famosa, acompanhada de perto por A Revolução dos Bichos. Após Auschwitz e o descobrimento do Grande expurgo, artistas, filósofos, historiadores, deitaram o século XX num enorme divã. O que afinal tinha dado origem ao fascismo? Como tínhamos chegado a Hitler e Stalin? Orwell sabia, assim como Bertolt Brecht, que “a cadela do fascismo está sempre no cio”. Por isso, sua última obra é um dos “alertas” mais contundente para o perigo do fascismo.
A resistência de 1984
É um desafio escrever qualquer coisa sobre 1984. O que eu poderia dizer sobre a obra que já não foi dito e melhor? Realmente muito pouco. Certamente não fiz nenhuma leitura mágica que encontrou aquilo que estava escondido no âmago da obra. Mas isso, no fundo, pouco importa. Como diz Winston “os melhores livros são aqueles que lhe dizem o que você já sabe”. No entanto, o que eu já sei que o livro apenas organizou para mim? Na verdade, eu não sei. Mas tenho uma aposta. Apesar do vento cruel e da poeira arenosa que tentam impedir Winston de seguir, ele resiste. Parece que há um lugar secreto nos homens e mulheres onde reside uma força capaz de não sucumbir à barbárie. 1984 é um apelo à preservação desse lugar. Não é a toa que o mais importante dos ministérios dessa sociedade distópica seja o Ministério do Amor.
Ao Ministério do Amor cabia manter a lei e a ordem. Curioso o fato desse ministério cuidar da lei e da ordem. Pode-se dizer, também, que ele era o responsável pelo ato e pensamento. Diz-se que este era o mais apavorante de todos. Aqueles que passavam pelo Ministério, saiam transformados. Nele, ninguém entrava, mas era levado.
Ironicamente, foi o amor por Júlia que despertou a rebeldia em Winston. Mesmo que fracamente, Winston teimava em não se afastar daquilo que nos faz humano. Durante o “dois minutos de ódio”[3], ele encontrou no olhar de Júlia alguma compreensão. Ele não estava mais sozinho. Juntos, eles tentavam subverter o mundo em que viviam. O sexo, o gosto do chocolate e o aroma do café; a lembrança rarefeita de uma música antiga e a certeza de que entre eles existia um lugar intransponível, onde a violência do Partido não chegaria. Cruelmente, ambos terminaram invadidos pelo Ministério do Amor.
Em 1984, a sociedade havia se sofisticado. O personagem O’Brien dizia ter resolvido o problema de todo projeto: o que fazer com os que não aceitarem? Diz ele: “Nós o convertemos, capturamos o âmago de sua mente, remodelamos o herege”. A busca dele não era por uma aparente conversão, senão pela conversão de corpo e alma. A expressão é auto-explicativa. Primeiro enfraquece o corpo, tirando-lhe suas características, forças e desejos; depois, uma vez superado a barreira corporal, a alma. Perdem-se os laços afetivos, a memória não lembra mais e “esvazia-se” a consciência individual. O homem fica perdido de si; à deriva.
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Grande Irmão X Grande Inquisidor
George Orwell denuncia que essa sociedade – a nossa? – encontrou uma forma de aniquilar o humano do ser humano. Pode-se chegar ao âmago do humano com a dose certa de pânico e violência. A violência torna-se, pois, o caminho para o amor. Mas quem pensaria algo muito diferente disso, em plena década de 1940? Difícil. Um século antes de Orwell, outro grande escritor usou a sua literatura para mergulhar na alma humana. Fiodor Dostoiévski não podia saber o que os anos seguintes preparavam para o homem, mas também alertava para o perigo da desumanização. Em diálogo com niilistas, anarquistas, comunistas e, sobretudo, ateus, o autor acreditava que a vida alienada de uma moral individual abriria espaço para uma política radical. Enquanto Orwell pensou no Grande Irmão, Dostoiévski criou o Grande Inquisidor.
Ambos os autores, parece-me, falavam da preservação daquilo que nos faz humano, o que entendo como aquele íntimo comum a todos: a consciência. O ato de refletir, ou a potência de reflexão, é compartilhada por todos os homens e mulheres; cada um a seu modo, conforme suas próprias condições, faz uma reflexão sobre seus atos. O lugar dessa reflexão humana é a consciência: um tribunal doméstico de julgamento moral sobre as nossas ações. Mais. É esse o lugar onde analisamos não apenas o ato em si, mas também, e principalmente, a sua real intenção.
A angústia de nossa vida é que nunca entendemos bem como funciona a nossa consciência. Em Os Irmãos Karamázov, após ser condenado injustamente pela morte de seu pai, Dmitri Karamázov vai para a prisão com a “consciência limpa”, porque ele sabia não ser o verdadeiro autor do crime. Por outro lado, seu irmão Ivan Karamázov, sequer acusado do homicídio do pai, sente-se culpado de ser o mentor do crime. Ele enlouquece, assombrado por sua própria consciência. O que falar então de Raskolnikóv, de Crime e Castigo? O seu crime tinha, pode-se dizer, uma justificativa racional bem construída. A velha usurária vivia às custas do sofrimento alheio. Ceifar essa vida, parecia bastante razoável para Raskolnikóv: seria até uma ajuda para o mundo. No entanto, a consciência parece não estar lado a lado com a razão. Após cometer o crime, a consciência de Raskolnikóv o perturbou – e ao leitor também – até que ele desejasse o castigo pelo seu crime.
Mas esse tribunal particular estabelece uma incerteza insuportável para o homem moderno. O Grande Irmão queria a certeza, a consciência vazia de indivíduo e cheia de Partido; O Grande Inquisidor negava Cristo e sua morte pela liberdade humana e tomava para si a consciência individual.
No poema “O Grande Inquisidor”, Ivan Karamázov conta ao seu irmão Aliócha, a história que havia criado sobre a volta de Cristo. Ela se passa em Sevilla, no século XVI. Ao voltar, Cristo fora acusado de heresia e capturado por um inquisidor espanhol. Na cadeia, o padre espanhol lhe diz: “(…) Não eras tu que dizia com frequência naquele tempo: ‘quero fazê-los livres?’ Pois bem, acabaste de ver esses homens ‘livres’. (…) Durante quinze séculos nós nos torturamos com essa liberdade, mas agora isso está terminado, e solidamente terminado”[4]. O Grande Inquisidor pedia a retirada de Cristo, porque Ele, ao morrer pela liberdade humana, havia deixado o homem com o fardo de decidir entre o bem e o mal; e este preferia morrer a ter que fazer essa escolha. Agora, cabia à Igreja terminar o trabalho de Filho de Deus e tranquilizar a consciência dos homens porque eles não eram capazes de viver em tamanha incerteza.
A entrega da liberdade
E que diferença há, pois, entre o Grande Inquisidor e o Grande Irmão? Não muita. O princípio é o mesmo: fazer com que os homens entreguem a sua liberdade. E, invariavelmente, assim o fazem. Na maioria das vezes, orgulhosos do sacrifício individual por um coletivo. O Grande Inquisidor, assim como O’Brien, queria fazer o trabalho que Cristo não havia feito: colocar uma certeza no homem. Para Ivan Karamázov, Cristo acreditou demais nos homens; achou que eles conseguiriam viver com a responsabilidade de suas próprias ações e tranquilos com suas consciências. Ao contrário de seu irmão Aliócha, ele se nega a erigir uma sociedade baseada no amor ao próximo, pois a julga impossível justamente por ser amar o próximo. Sua escolha, portanto, é amar a humanidade.[5] Aqui, também, há uma submissão do indivíduo ao coletivo; do humano à humanidade.
Apesar de ser possível traçar um paralelo entre O Grande Irmão e O Grande Inquisidor, há uma diferença. O Grande Inquisidor não se utilizava dos mesmos métodos de O’Brien, porque acreditava que os homens eram incapazes de viver livres e estes não pensariam duas vezes para entregar a sua liberdade de consciência (responsabilidade individual pelos seus atos) ao primeiro que lhes garantissem uma confortável certeza. Em 1984, O’Brien buscava uma certeza de consciência e ele a encontrou na violência. Através dela, ele esvaziava a consciência e a enchia de Partido e Grande Irmão. Ele matou o indivíduo e criou um ser exclusivamente coletivo, incapaz de se opor ao poder; lobotomizado de que esse era o único caminho. O Grande Inquisidor alcançou o mesmo resultado, através da entrega da liberdade de consciência em troca de uma certa felicidade; aquela que dá ao outro a sua responsabilidade individual, a sua conscientização da própria consciência.
A literatura de Fiódor Dostoiévski é genial em apresentar essa força da consciência: um tribunal doméstico do qual não conseguimos escapar. Orwell denunciou a tentativa de matar esse âmago pessoal, que nos faz, afinal, indivíduo (isso é o que permite com que sempre haja insatisfeitos). Para vivermos em sociedade e não sucumbir à violência é, como escreveu Dostoievski, “estando convencido”. Mas como estar convencido quando a palavra já não diz; ou quando amor e violência estão dentro de um mesmo campo semântico? Esse é um problema que teremos que enfrentar. Por enquanto, talvez o mais importante de se pensar essas duas obras em comparação seja o alerta que ambas fazem para os perigos de se tentar criar uma massa de pessoas sem individualidade.
Winston se negou a entregar sua consciência. Daí que surgiu o método de O’Brien. George Orwell imaginou que esse seria o objetivo distópico do século XX: alcançar uma certeza absoluta. Talvez, a missão do século XXI, se de fato queremos salvar alguma coisa, seja abrir os olhos para o que escreveu Orwell. Se ainda podemos nos horrorizar com 1984 é porque ainda temos esperança. Em determinado momento de seu percurso, Winston diz: “O fato de ser uma minoria, mesmo uma minoria de um, não significa que você fosse louco. Havia a verdade e a inverdade, e se você se agarrasse à verdade, mesmo que o mundo inteiro contradissesse, não estaria louco”. Mas não se enganem, leitor, essa verdade está no coração.
[1] ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 11.
[2] O primeiro é de 1954, com direção de Rudolph Cartier. Apenas dois anos depois, Michael Anderson também fez a sua adaptação (1956). A última e mais famosa foi feita no fatídico ano de 1984, com direção Michael Radford. O filme conta com nomes de peso, como John Hurt e Richard Burton.
[3] Prática que consiste em dois minutos de escárnio ao discurso de um inimigo.
[4] DOSTOIÉVSKI, FIODOR. Os Irmãos Karamázov. São Paulo: Editora 34, p. 348.
[5] A conversa entre Ivan e Aliócha acontece no livro V, capítulo IV: “A revolta”. (p 326, 340). Ivan narra o fato real de assassinatos cometidos contra crianças. Sua revolta se dá em que os homens eram os únicos animais capazes de fazer da barbárie arte. Ao contar o caso de uma criança assassinada no colo da mãe, ele diz não ser capaz de abraçar o assassino, assim como diz a ordem moral de amar ao próximo.