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“Intolerância”, de Rafael Ruiz

Em “Intolerância”, de Rafael Ruiz, a questão que fica é: onde mora o fundamentalismo?


Intolerância, um tema mais do que contemporâneo, mais do que relevante nos tempos que vão, é assunto que se encontra na base dos debates que fundaram o mundo construído após as revoluções do século XVIII. Como estabelecer o justo equilíbrio entre os conteúdos da consciência privada dos cidadãos, onde estão suas crenças pessoais, sua fé, suas escolhas políticas e de modos de viver e amar, e os regramentos que definem o papel das instituições e do Estado em nossas vidas? Nada mais comum no debate contemporâneo do que apontar caminhos para isso, ora sugerindo regramentos públicos que possam acolher as diferenças e edificar uma sociedade de fato igualitária do ponto de vista civil, ora imaginando controles sobre corações e mentes que se justificam pelo “bem geral” pretendido.

O livro que apresento ao leitor, Intolerância, de Rafael Ruiz (Editora Patuá, 2019), enfrenta esta questão a partir da experiência de duas personagens que, em meio ao mestrado e ao doutorado, trilharam caminhos de pesquisa e de fé em diálogo com o mundo dos evangélicos. O autor é neófito no mundo da literatura, mas apenas como escritor. Como pesquisador, professor e participante do Laboratório de Humanidades do CEHFI/Unifesp, é um cidadão que pretende discutir o mundo pelas lentes da literatura.

Em seu primeiro romance, a questão destacada não é insinuada, ela é visceralmente desnudada pela personagem/narrador que nos conduz, Isabel. A história que Ruiz narra, a partir das memórias de Isabel, é recortada pelos textos que, percebe-se aos poucos, ela publica em um blog que começou quando ainda na graduação no departamento de História de uma universidade. Se a experiência de Isabel, narrada a partir de suas memórias sobre concursos fracassados no departamento no qual estudou e discussões com o orientador sobre os resultados de sua pesquisa, é o fio condutor da história, as publicações no blog funcionam como uma espécie de consciência das trilhas e dores de Isabel, já que se tratam de reflexões sobre poder e liberdades a partir de autores como Dostoievski, Lewis Carroll, T. S. Elliot, Humberto Eco, entre outros. E é uma publicação no blog que abre a narrativa: “Tudo se reduz a uma questão de poder”. Afinal, o velho Humpty Dumpty tinha razão quando explicara a Alice que, nas relações humanas, o que importa não são as palavras, mas quem detém o poder, para dar-lhes o significado.

A aventura de Isabel

E assim começa a aventura de Isabel na universidade, suas lembranças entrecortadas pelas publicações no blog e pelos muitos avisos que recebera, às vezes em conversas gentis e informais e outras de maneira agressiva, sobre afastar-se do departamento e sobre a experiência da amiga Clara. Ela escolhera estudar o papel dos evangélicos na polícia partidária brasileira, depois do Golpe de 64, mas os resultados que trouxera ao orientador após o tempo de pesquisa em Paris não foram aprovados, distanciavam-se do “decreto politico” vigente sobre o evidente conservadorismo dos evangélicos. Isabel escolheu respeitar o que as fontes haviam informado e, por isso, enfrentou o orientador e o pensamento dominante no “departamento”.

Em meio à trajetória de Isabel, temas como justiça, processo civilizatório, papel da razão como elemento ordenador da vida pública e, especialmente, a lucidez para compreender e aprofundar o entendimento de pontos de vista distintos, são comentados em relação às desventuras em série da personagem/narradora. Ela conversa com Lorca, Goethe e Guimarães Rosa, entre outros, e nos vai apresentando uma instituição, a universidade, que deveria guardar os saberes e que, no entanto, estabelece saberes que podem ou não ser estudados e, mais ainda, professados.

Tema de fundo

O tema de fundo é, assim, o dos fundamentalismos que se expressam não apenas em grupo políticos, religiosos e partidários, mas em grupos de intelectuais e em instituições que, se na origem se definem como laicas, na prática estabelecem “religiões” que se manifestam em metodologias de pesquisa e em aportes teóricos.

Mas na construção do enredo, a narrativa não apresenta conclusões: seriam as escolhas metodológicas e políticas ou as relações pessoais que indicariam os caminhos do apoio e da perseguição dentro da universidade? Isabel confunde o leitor:

“[…] depois acabamos brigando e ainda não sei se foi mesmo pela mudança das minhas ideias na tese ou se tudo não passou de uma armação feita por ele para se livrar de mim com uma bela desculpa acadêmica.”

“Tudo é pura retórica. Na verdade, procuram-se argumentos ‘republicanos’ e ‘objetivos’ para esconder os verdadeiros interesses que não têm nada de republicano nem de objetivo.“

As reflexões de Isabel, e as de sua amiga Clara, que nos são apresentadas pela primeira, lembram as de Rossana Pinheiro-Jones, na newsletter que escreveu neste mês para a Livro & Café, lembrando o profético posfácio de Ray Bradbury em Fahrenheit 451:

“Em certo momento, lá no posfácio (sim, li até o posfácio!), Ray Bradbury relembra o processo de escrita do livro, o que deixou de lado, o que incorporou na narrativa, e diz o seguinte: ‘Resta, apenas, a menção à previsão que meu Bombeiro Chefe, Beatty, fez em 1953, na metade do livro. Tinha relação com livros serem queimados sem fósforos ou fogo. Porque você não precisa queimar livros, precisa, se o mundo começa a se encher de não-leitores, não-aprendizes, não-conhecedores?’ (trad. livre da edição Kindle, p. 117).”

E o que são os fundamentalistas de metodologias e projetos políticos senão “não leitores”, “não aprendizes” e “não conhecedores”? Rafael Ruiz parece nos dizer que o mesmo processo de sublimação dos livros como criadores de espaços de diálogo e convivência de opostos e estranhos espalhou-se pelas universidades. O romance nos convida a esta reflexão.

Sobre o autor:

Rafael Ruiz nasceu em Sevilla (Espanha) e pouco antes de cumprir 20 anos mudou-se para São Paulo, onde mora. Graduou-se na Faculdade de Direito da USP, onde fez mestrado em Direito internacional. Fez o doutorado em História Social, também na USP. É Professor de História da América da EFLCH da Universidade Federal de São Paulo. Coordenador do Núcleo de Estudos Ibéricos e do Laboratório de Humanidades da UNIFESP. Publicou vários livros e artigos especializados sobre História da América e sobre Literatura: “O sal da consciência. Probabilismo e Justiça no mundo ibérico”, “O Espelho da América. De Thomas More a Jorge Luis Borges”, “Literatura e Crise: Uma barca no meio do oceano” e “Alienação e Intolerância”.

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Leia mais: Fahrenheit 451 (Ray Bradbury): ler é o maior ato de rebeldia

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