O jornalismo e a distopia que estamos vivendo

Esse texto começa com uma reunião entre Lula e os donos da Folha de S. Paulo em 2002. Quem conta a história é Ricardo Kotscho, então assessor de imprensa de Lula na campanha. Há versões para a história. Uma diz que Lula se sentiu ofendido ao ser questionado por Otavinho o que ele fez nos últimos 20 anos para se preparar para ser presidente se nem inglês ele falava. Outros dizem que a gota d’água foi quando Otavinho questionou uma aliança com o PL como sendo uma união com o Malufismo, que não existia naquela época.

Se restar dúvidas sobre esse episódio, Nassif, Rovai, a Folha e o próprio Kotscho contam tudo.

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O cara que sonhava sem ser dramaturgo

Começo dizendo tudo isso para meter a mão onde não devia e não fui chamado. Para mim o pai da distopia que estamos vivendo chama Otavio Frias Filho, o Otavinho. O filho do seu Otavio. O cara que sonhava sem ser dramaturgo, se auto-declarava ensaísta, mas terminou mesmo como quem inventou o jeito Folha de ser. Da Ilustrada dos anos 1980 a ficha falsa de Dilma Roussef.

O jornalismo que não ouve o outro lado

Conheci Otavinho no Olimpo. Trabalhava muito perto de seu “gabinete”, como chamava a sala dele na Folha e depois conheci a forma como ele formou o caráter da Folha. Ou seja, da forma como jovens editores humilhavam jovens repórteres, do sucateamento do prédio central do jornal, dos PJs, pagamento de piso a mais da metade da redação, da falta de registro em carteira. De mandar todos os jornalistas se esconderem num andar vazio para fugir da fiscalização. Do jornalismo rasteiro, que diz não ouvir o outro lado por este não retornar a tempo, mesmo sendo mentira.

Otavinho se gabava da transparência da Folha com o Ombudsman, o primeiro no país, mas foi ele a capar, no meio de uma campanha, uma crítica honesta. A proibir que a crítica diária saísse da redação instituindo uma Gestapo que mandava embora quem compartilhasse o e-mail e amenizando a crítica do final de semana, indicando o erro mas dizendo no fim: tudo é normal.

O jeitão Folha

Esse dois pesos e duas medidas na cobertura, que manda repórter para Porto Alegre para investigar uma loja de R$ 1,99 da filha de Dilma, mas se recusa a cobrir os negócios milionários da filha de Serra para no final posar para foto em cima do muro, foi a Folha que inventou. Estadão sempre teve lado, sempre deixou isso claro. Os mesquitas eram excelentes patrões, ao contrário dos Frias, que criaram método para depreciar a carreira do jornalista.

Assim, quando Otavinho morreu, eu estava no final do meu mestrado. E não valia a vela. Seu pai morreu num plantão meu. Acho que devo ter sido o primeiro a dar a nota, bem antes da Folha.

Via seu Frias como um empresário decente. E Otavinho como o filho do patrão. Um sujeito deslumbrado, que foi jornalista por ter um jornal em seu quintal. Fosse filho de funcionário público, estaria hoje (se vivo, óbvio) tocando um cargo comissionado num governo tucano em São Paulo: algo como diretor da ópera estadual. Manager da Pinacoteca ou qualquer nome pomposo que remetesse à arte.

Dos colegas que cobriram sua morte, bastou morrer para virar santo. Foi de visionário à “melhor jornalista que conheci”. Pro inferno. Apesar de todas as minhas divergências, Sandro Vaia foi melhor que Otavinho. E falo isso não para elogiá-lo.

O tempo passa e…

O mais impressionante é que, após sua morte e por um bom tempo, grandes jornalistas lhe renderam homenagens do tipo “se vivo ajudaria a derrubar o governo”. Na verdade, ele morreu achando que Alckmin levaria. Que enfim chegara a vez do tucano.

Quando a ficha que mostrava Dilma Roussef como terrorista veio à baila e foi desmentida até por quem trabalhou no DOPS, Otávio, o soberbo, não deixou se intimidar e disse que se não era possível dizer que a ficha era falsa por falta de uma original para comparar, também não poderia tê-la como verdadeira.

Foi assim que ele desonrou uma mulher honesta.

O jornalismo e a distopia

Hoje, uma repórter do seu jornal é pintada como prostituta pelas milícias bolsonaristas e ainda há fiéis que acreditam que ele comandaria um levante contra Bolsonaro.
Mais provável é que do prédio da Barão de Limeira, ao olhar alguns quarteirões, para a rua Helvétia e suas vielas “de todo um bairro de prostituição e de crime”, ele e mais dois puxa-sacos tivessem o seguinte diálogo:

— Vejam, ia dizendo o conde: vejam toda esta paz, esta prosperidade, este contentamento… Meus senhores, não admira realmente que sejamos a inveja da Europa!

E o homem de Estado, os dois homens de religião, todos três em linha, junto às grades do monumento, gozavam de cabeça alta esta certeza gloriosa da grandeza do seu país.


A imagem que ilustra este texto é de um projeto do artista Jeff Gillette.

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