Estrela Dalva
.Em uma pequena cidade do interior do Maranhão, uma habitante em particular chamava a atenção dos moradores daquele lugar. O que não era por qualquer simples motivo, pois aquela figura ímpar era admirada por todos pelo seu exemplo de vida, marcada pelas adversidades, perdas e superação ao longo dos anos, servindo de inspiração e representatividade para muitos da localidade.
.Desde criança havia sido criada pela avó materna, conhecida por todos da região, em um casebre frágil de taipa já rachado e inclinado pelo tempo. As duas tinham somente a companhia uma da outra. O avô da garota morrera de enfisema pulmonar quando esta ainda tinha sete anos. Às vezes, quando a situação econômica da casa agravava, neta e avó iam para a feirinha da cidade vender doces, salgados e temperos para manter o sustento e pagar as dívidas. Apesar das dificuldades e necessidades básicas pelas quais passava, a garota resolvera não se abalar, tampouco ser dada por vencida pelas peças que a vida lhe pregava constantemente. Realizava as tarefas domésticas, cuidava da avó e nas horas vagas da noite estudava com afinco na companhia de uma lâmpada de querosene para a concretização de seu sonho: a de ser professora. Sonhava em fazer a diferença na comunidade e de levar a educação para crianças, adolescentes e adultos, bem como o desejo de proporcionar uma vida mais confortável para a idosa que a criara desde tenra idade.
.– O caminho será cheio de pedras, minha filha, algumas afiadas. Terá provações como qualquer outro processo para quem deseja realizar seus sonhos. Mas sabe qual é a boa notícia? Essas pedras podem ser facilmente quebradas e moldadas conforme a força e determinação que você caminhe em direção aos seus objetivos, até se tornarem planas e confortáveis sob os seus pés. – Aconselhava a avó para a garota, que retinha tudo em silêncio.
.Já adulta e licenciada em Letras, os moradores da cidade ficavam perplexos com o seu alto grau de erudição sobre os mais variados conteúdos: desde assuntos simples, perpassando por conhecimentos técnicos e científicos dos mais complexos. E não somente isso. Sua formosura, coragem e espírito de valentia destacava-se dentre muito dos homens e mulheres daquele interior. Por isso, sempre fora considerada uma pessoa à frente dos demais, dos valores e cultura de sua época.
.Nas manhãs de domingo, um dos nomes mais comentados era o seu, quando os cidadãos se encontravam no mercado próximo à rodoviária para as compras do almoço e mantimentos da semana. Pelos corredores estreitos entre lojinhas e barracas com vendas de verduras, frutas, carnes e especiarias, podia-se ouvir comentários e cochichos sobre o mesmo assunto, a mesma pessoa: “Céus! Ela é ou não é adorável?”, “Notou como estava deslumbrante agora pouco?”, “Eu só queria aquela inteligência e estaria feliz o suficiente”, “Sua avó teria orgulho em ver a mulher que ela se tornou”, “Minha filha diz que ela é a professora mais querida da escola. Não duvido!”, “É impressionante como consegue ser tão feliz e completa, mesmo vivendo sozinha, sem filhos ou estar casada. Dá pra imaginar isso?”. E assim, seu nome preenchia os ares daquele ambiente, indo de boca a boca, por todos os estabelecimentos e tendas da feira ao ar livre.
.Tamanha era a afeição e fascínio que tinham sobre ela, que regularmente grupos amontoavam-se ao seu redor quando a encontravam caminhando pelas ruas, e pediam-lhe para que falasse sobre qualquer coisa; sem se importarem com o assunto, se levaria minutos ou horas, tampouco sem darem importância ao cansaço físico ou para um sol escaldante de uma tarde de verão. A formosura daquela voz e o desejo por quererem ouvi-la era inigualável, quase hipnotizante a ponto de pedirem cada vez mais, de desejarem estar sempre perto da portadora de tão perfeita sonoridade, quase espiritual. Assim como o homérico Ulisses que, preso ao mastro de seu navio, suplicava veementemente que o desamarrassem, após este ouvir o deleitoso canto das sereias e desejar ir de encontro a elas. Aquelas duas figuras femininas, mitológica e da pequena cidade do Maranhão, possuíam vozes que ecoava nos corações de quaisquer pessoas que a ouvissem.
.Certa tarde, quando alguns transeuntes reuniram-se à volta dela na praça Santa Teresinha e perguntaram-lhe, por exemplo, o que esta sabia ou já lera sobre o curioso e vasto universo, logo respondia com prontidão e paixão calorosa na voz, cheia de didática e simplicidade como a boa educadora que se tornara:
.– Um assunto deveras interessante. O universo é realmente fabuloso. Está sempre em constante expansão. E as estrelas? Ah! Acredita-se que há mais estrelas no céu do que grãos de areia em todas as praias da nossa Terra. Alguém se prontificaria em conferir a veracidade? – sorria enquanto continuava. – Nossa Via Láctea, por exemplo, possui cerca de 200 a 400 bilhões – enfatizava – de estrelas aproximadamente. O número de galáxias atualmente chega a trilhões. O que nos faz acreditar que a quantidade de estrelas seja quase, se não, infinita. E já falei sobre a constelação de Orion? É a minha favorita. – Logo que os ouvintes demonstravam incompreensão, a oradora logo simplificava. – São as “Três Marias” que vislumbramos no céu. Este é o nome popular que damos para esta constelação. São fascinantes, não acham? É incrível como o avanço tecnológico e das civilizações vêm descobrindo coisas tão fantásticas sobre o mundo afora, onde até então eram incompreensíveis, misteriosas.
.Todos ficavam admirados com tamanha inteligência, poder de oratória e elegância vindas daquela que um dia fora apenas uma menina franzina, pobre e que por diversas vezes passara dificuldades junto à avó, chegando até a receber ajudas e doações de amigos e vizinhos.
.– Com licença, você já ouviu falar sobre… – perguntou alguma voz feminina enquanto tentava erguer a mão em meio ao aperto da multidão. Porém, foi imediatamente impedida por um homem que estava perto, como se a proibisse de qualquer manifestação. Tanto a mulher inibida, quanto os que presenciaram a situação, logo se viram revoltados com o ocorrido, ainda mais por notarem quem era o autor daquela ação.
.– Leopoldo. Quem mais poderia ser? E como se não fosse pior, bêbado como sempre! – Falou em alta voz a que teve a fala interrompida pelo homem.
.Leopoldo era um morador em particular, cuja filosofia de vida, pensamentos e preconceitos toldavam-lhe as ações, mente e coração. Já viúvo, para ele as mulheres nada mais eram que objetos, inferiores e com direitos e vontades limitadas e a serem controladas. Não deveriam ter qualquer tipo de voz e lugar na sociedade, à exceção das funções domésticas e deveres como esposa.
.– Mulher deve ser comandada no cabresto. Sempre foi e há de ser assim –costumava dizer enquanto virava grandes doses de cachaça quente no bar do Seu Antenor, cuja opinião no fundo, era como a do viúvo.
.Assim iniciou-se uma discussão na praça, com múltiplas vozes tentando sobressair-se umas às outras na tentativa de mostrar indignação e exigir o respeito e direito a todos. Por pouco Leopoldo ia sendo linchado por alguns homens, se este não tivesse fugido do local com grandes empurrões em qualquer um que estivesse à sua frente. O ambiente tornara-se hostil, selvagem.
.Após longos minutos de gritaria e sem resolverem a situação, perceberam que a mulher que a pouco falava sobre o desenvolvimento da civilizações e tantas outras coisas, observava a tudo silenciosamente. Embora o semblante demonstrasse neutralidade, seu olhar era pura reprovação diante daquele cenário. A algazarra foi aos poucos cedendo lugar para a ordem e um silêncio fúnebre, permitindo apenas o som de respirações fortes e praguejos baixos.
.Observavam-na de modo inquisitivo, esperando pelo que a mulher iria falar. Indignação e raiva era o que também esperavam dela, da mesma forma que os outros. Depois do que pareceu ser uma eternidade, abriu a boca para pronunciar algo, mas logo reteve-se, escolhendo melhor as palavras, até falar de forma plácida, mas com firmeza e vigor, alto o suficiente para que todos da multidão pudessem ouvi-la.
.– Um homem só deve segurar o braço de uma mulher no intuito de ergue-lo ainda mais alto, incentivando-a a voar rumo aos seus sonhos, a comemorar suas conquistas pessoais com grande festa e alegria, ou para ampara-la nos momentos de pesar. Caso contrário, é inaceitável qualquer outra e vil ação contrária. Não somos animais a serem controlados! Espera-se que um verdadeiro homem utilize sua força somente na intenção de oferecer aquilo que é gentil, agradável e cortês para uma mulher.
.“Embora tenhamos corpos que nos diferem, isso não são fatores decisivos de superioridade ou inferioridade. Um corpo, independentemente do sexo, nada mais é do que algo efêmero entre homens e mulheres que no fim serão reivindicados pela terra. Mas há outras coisas e preocupações que enquanto tivermos o último fôlego de vida, devem ser direcionados os nossos esforços.
.E agora isto vai para todas vocês: coisas nobres e louváveis como a coragem, inteligência, força de vontade, determinação, decisões e opiniões próprias no mundo e acerca deste, também podem e devem equiparar-se aos homens, quem sabe até superá-los. E isso não significa uma competitividade ou necessidade de provar qual lado é o melhor. Mas fala muito sobre como não perdemos tempo alimentando preconceitos ou pensamentos ultrapassados, como alguns ainda insistem em tê-los e, consequentemente, os tornam pessoas retrógradas.
.É por isso que naturalmente estaremos destacadas dentre os demais, pois estamos ocupadas demais lutando por nosso lugar no mundo, através da prática da perseverança, resiliência, fé e amor. Características estas que desde a história nos tornaram e sempre nos tornará cada vez mais mulheres, com um lugar de destaque neste mundo. Não precisamos provar nada de forma desnecessária, violenta ou vulgar. Mas podemos mostrar que o ‘sexo frágil’ não passou de um mito.”
.Ao concluir o discurso, a mulher ergueu o braço em direção ao alto, gesto este que foi seguido inicialmente de modo tímido, mas logo energeticamente por todas as outras mulheres que estavam ali. Não era sinal de rebeldia ou anarquismo. Era apenas a demonstração de liberdade e a convicção de que todas poderiam ser exatamente isso: livres.
.Gritos ensurdecedores de vivas, aplausos e assovios preenchiam a praça. No alto, o canto de uma águia retumbou no céu, como se a ave houvesse se juntado àquela celebração.
.Já era quase noite, o sol começava a se pôr, estendendo um manto no céu em tons vibrantes de vermelho, laranja e algumas rajadas de rosa, propiciando um belo quadro paisagístico para qualquer um que se dispusesse a vislumbrá-lo. Ao longe, a professora notou uma estrela surgindo aos poucos no horizonte. Um ponto de luz branco cada vez mais brilhante. Sorriu consigo mesma. Sabia o que era e o que significava para si.
.Para alguns, era apenas o planeta Vênus ficando visível. Mas para ela era algo mais pessoal, íntimo. Aquele planeta também carregava um outro nome. O seu nome. E com regozijo e gratidão no coração por tudo que a vida lhe proporcionara e lhe ensinara, contemplou a estrela Dalva em um fim de tarde de sexta-feira.
Sobre o autor:
Matheus Fernandes é estudante do curso de Letras – Português/Espanhol pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA, na cidade de Bacabal, interior do Maranhão. Tem 22 anos de idade e já foi responsável pela liderança de dois projetos de extensão: Jovem Parlamentar Bacabalense (2018) e o projeto Letras em Cena (2019), tendo conseguido neste último o prêmio de melhor projeto cultural no evento “II Jornada Cultural” pela Universidade Estadual do Maranhão, São Luís – MA (2019). Atualmente é autor do conto “A Educação do Futuro”, capítulo constituinte da coletânea literária Os Melhores Contos de 2019, publicada pela Editora Inovar (2020).
Instagram: @fernandes_maatheus
Uma resposta
Muito emocionada e com o coração transbordando de alegria , recebi hoje a mais completa homenagem para este dia que se faz nos outros também.
Conheco a sua história e muito acredito no seu potencial .Parabens