Espectro

    Inspirado no poema “Viva-Voz” de
    Aline Monteiro, em uma noite de
    reminiscências de uma terça-feira.

                      .– E este é o ballonné. – Disse-me ela enquanto executava o passo de ballet que viera treinando nos últimos dias. Eu a observo enquanto ela faz o movimento cruzado de perna semiflexionada, abaixando levemente o corpo ainda ereto e abrindo os braços com tal graciosidade, que penso que a qualquer momento ela possa movimentá-los e flutuar; ir para longe; voar para onde quiser.

                      .Ao terminar, pergunta-me se ainda lembro o nome do movimento. “Sim”, eu digo, mas sem convicção na voz. Ela ri de forma marota; sabe que minto, mesmo eu me esforçando para não rir e me entregar. Faz então com que eu repita a palavra até acertar corretamente a pronúncia. “Ballónne”, “bállonne”, ba-llo-nné”. Rimos daquilo por alguns segundos, até ela estender sua mão em minha direção com uma elegância que até então eu nunca tinha visto antes, e acredito que ninguém mais consiga fazer. Eu sei o que aquilo significa. Um convite, em sussurro, para uma dança, para que nos divirtamos ali. Eu e ela.

                      .Ainda irresoluto, aceito o convite. Embora eu não entenda o porquê, é visível em seus olhos a expectativa para aquela dança, tal como é perceptível as batidas do meu coração através da camisa. Ele agora pulsa três vezes mais rápido.

                      .Começamos com pequenos passos. Ela me explica os movimentos de pernas e onde minhas mãos devem segurar em seu corpo. Tento não demonstrar meu desconcerto e no quanto admiro aqueles olhos cor de ébano, enquanto estamos próximos um do outro, face a face. Crio algum passo aleatório que me vem na mente, tudo para fazê-la sorrir. O riso dela tem o poder de romper os céus.

                      .Frente, lado, atrás, lado, rodopio. Dançávamos de todas as formas e em todas as direções, sem parar, sem nos cansar, sem nada mais importar no mundo. Naquele momento eram apenas nós dois. Éramos um. Frente, lado, atrás, lado, rodopio. Brincávamos. Era como se fôssemos donos daquele mundo. Do nosso mundo.

                      .Interrompo nossa coreografia improvisada. É chegada a hora. Reúno forças – não sei de onde – e entrego-lhe um pequeno papel, cuidadosamente dobrado e perfumado.

                      .– Para você. – Tento falar com indiferença, já construindo uma barreira de defesa para qualquer resposta que eu tema receber.

                      .Trata-se de alguns versos que resolvi eternizar entre as linhas e entrelinhas durante estes últimos meses de inspiração. Embora eu me esforce na elaboração das palavras, adjetivos, comparações e metáforas para encantá-la com a minha escrita e para o que ali estou revelando; ela em si, em carne, osso e alma é puro lirismo, poesia romântica. É quase em vão tentar descrevê-la.

                      .Após terminar a leitura – que parecem eternas horas para mim –, ela me encara com tal brilho no olhar, que posso arriscar em afirmar que as estrelas sentiriam inveja. Agora o coração palpitava cinco vezes mais rápido quando ela disse:

                      .– Está tudo tão lindo! Por que demorou todo esse tempo?

                      .E antes que eu consiga responder, como em resposta, toma minha mão e faz com eu dance com ela novamente. Agora é diferente. Parece que cada passo significa algo, como se cada movimento dela dissesse um “sim” em resposta.

                      .Ela para por um momento, me encara de tal forma que não sei o que fazer, a não ser engolir em seco e esperar o que quer que venha de sua boca. O silêncio é torturante e parece ser proposital. Minha ansiedade parece diverti-la. Foi quando ela falou aquelas palavras que tratei de gravar para sempre no mais íntimo do coração, pois os pensamentos e lembranças esvaem-se com o tempo:

                      .– Eu também…

                      .Repentinamente ouço o toque do telefone em cima da cômoda, tirando-me bruscamente daquela absorção. Percebo que eu estava dançando sozinho, os braços suspensos, segurando um alguém invisível, um fantasma, numa sala fria e vazia. Eu estava de volta à realidade. E eu não a encontrava lá. Ao fundo, uma canção de Dalva em um radinho de pilha velho e mal sintonizado realçava ainda mais a atmosfera daquele ambiente soturno. Se me refiro ao exterior ou interior? Não sei. Ouvi em silêncio a composição:

                      .Procurar uma nova ilusão não sei
                      .Outro lar não quero ter
                      .Além daquele que sonhei.”

                      .Compreendi naquele momento que a ilusão era traiçoeira quando encontra um coração que sente saudade. E que tentar esquecê-la era como perseguir as nuvens.

    SOBRE O AUTOR
    Matheus Fernandes é estudante do curso de Letras – Português/Espanhol pela Universidade Estadual do Maranhão – UEMA, na cidade de Bacabal, interior do Maranhão. Tem 22 anos de idade e já foi responsável pela liderança de dois projetos de extensão: Jovem Parlamentar Bacabalense (2018) e o projeto Letras em Cena (2019), tendo conseguido neste último o prêmio de melhor projeto cultural no evento “II Jornada Cultural” pela Universidade Estadual do Maranhão, São Luís – MA (2019). Atualmente é autor do conto “A Educação do Futuro”, capítulo constituinte da coletânea literária Os Melhores Contos de 2019, publicada pela Editora Inovar (2020).

    Instagram: @fernandes_maatheus


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