Com o avanço do coronavírus, avançou também o desemprego. E entre este e a saúde, parece haver uma competição para ver qual dos dois é o mais preocupante. Melhor ficar doente ou desempregado? É claro que a vida é mais importante que o emprego, mas sem emprego, como conseguir o dinheiro necessário para viver? Não à toa, esquerda e direita debatem de onde deve vir esse recurso tão fundamental: do governo até o fim da pandemia, ou do fim da imposição do isolamento social e a volta do trabalho normal?
A crer nos futurólogos que pululam por aí, a coisa vai piorar. Com a economia parada, o desemprego, no Brasil e no mundo, continuará aumentando. Que fazer?
Não tenho nenhuma resposta. O que sei é que a memória consola. Às vezes, pelo menos.
Um dia, pensando no problema do desemprego, me lembrei de uma frase, lida há tempos, num artigo cujo autor me escapava. Lembrava, porém, o autor da frase: o filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser. Sabia que tinha tal artigo entre meus recortes de jornal. Demorei, mas encontrei-o. O autor do artigo era o poeta André Valias. A frase? “Os desempregados são os pioneiros do futuro”.
André Valias diz que tal frase foi pronunciada por Flusser numa palestra, da qual nada mais registrou. Que será que ela significa? Não me parece que seja uma convocação para a revolução, do tipo “desempregados do mundo, uni-vos!”. Também me parece estranha a aplicação do termo “pioneiros” a uma massa considerável de pessoas. Pioneiros, em geral, são grupos pequenos, quando não apenas um indivíduo. Por fim, Flusser parece dar um sentido qualitativo a “futuro”, e não meramente cronológico. O futuro teria características distintas das do presente, e estas seriam forjadas por esses inusitados pioneiros.
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Que relação haverá, então, entre pioneiros e desempregados? Será que Flusser via nestes qualidades similares às daqueles? O destemor, talvez? Os desempregados seriam destemidos em criar novas formas de trabalho, em arriscar novas idéias, em aceitar trabalhos mais duros? Seriam mais capazes de acatar o atual clichê da pandemia e usar o tempo livre de forma mais audaciosa e produtiva?
Impossível retraçar o que Flusser quis dizer com essa frase. Mas ela é sugestiva e, sob certo ângulo, consoladora. Flusser via uma potência insuspeitada nos desempregados. Visão rara até para os próprios, cujo sentimento dominante é a impotência.
Pensar que o futuro da sociedade está nas mãos dos sem-emprego é reconfortante. Ainda mais num momento em que eles se multiplicam. Seria por conta disso, e deles, que podemos esperar um novo mundo pós-pandemia?
Mas o homem não vive de consolos. Quem está desempregado quer emprego. Acreditar na frase de Flusser pode ser um bom estímulo. Desde que não caiamos no absurdo de achar que quanto mais desempregados tivermos, mais “futuro” teremos.
Ou talvez a frase de Flusser tenha outro sentido, mais simples e duro. Seremos, no futuro, todos desempregados. Restaria ao homem achar aquilo impossível de ser feito pelas máquinas e robôs. Os desempregados de hoje já estão nesse futuro. Seria uma boa interpretação?