Cães, romance de Júlia Grilo faz uma provocação que se alimenta das pretensões do saber humano e de sua relação com outros viventes
Um cão chega para fazer parte da família. A partir daí, diante do seu novo animal de estimação, uma menina se vê diante de alguns questionamentos, aprofundando sua incipiente visão de mundo. É dessa premissa que parte o romance de estreia da jovem escritora Júlia Grilo, recentemente publicado pela Editora Penalux.
Abordagem temática
“Cães” é um livro cujas definições se dão pela diferença: para descobrir o que é humano, a autora busca primeiro pensar naquilo que não é. É um romance sobre limiares, sobre o que nos une e o que nos separa, sobre a distância que há, enfim, entre os homens e os bichos (o homem é ou não é bicho?), os homens e as mulheres (as mulheres também compõem o que se chama de homem?).
Do início ao fim, Cães é uma descrição dos processos de socialização – isto é, daquilo que faz com que sejamos o que somos. Neste sentido, a narrativa considera a ciência e a filosofia como produções propriamente humanas: é com as lentes de homens que enxergamos, é a partir delas que fazemos a ciência, que explicamos o mundo, que constituímos as definições. O que entendemos por “humanidade”, então, é um conceito e, portanto, uma ficção.
O processo da escrita
“Eu comecei a escrever por volta dos 10 anos, em blogues”, explica Júlia Grilo. “Por isso a minha escrita se funda carregada de todos esses signos da linguagem digital, que é ligeira, informal e até meio zombeteira, ácida”.
A escritora também conta que somente aos 15 anos passou a enxergar a sua escrita de outra forma, com uma perspectiva mais profissional. “Isso ocorreu no começo do Ensino Médio”, diz Júlia, “naquele período de transição difícil, quando passei a questionar a escola como instituição, como modelo. Um dia estava navegando pelo Facebook e vi uma entrevista da filósofa Viviane Mosé discorrendo sobre o papel da escola. Pronto! Pedi a meu pai o livro dela: ‘A escola e os desafios contemporâneos’ (2013). Seria meu presente do Dia das Crianças (risos)”.
Essa leitura e seus questionamentos, levou-a por sua vez a escrever o seu próprio ensaio, que foi intitulado “Perdemos o futuro”.
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Voltando ao livro “Cães”
Sendo a ambiguidade algo inerente à condição humana, os personagens de “Cães” sofrem e fazem sofrer. A narrativa dá a tônica à colonização como um fenômeno em seu nível psicológico, contíguo ao processo de subjetivação que engendra os homens e as mulheres.
Este é o eixo central da história, a partir do qual surge um subtema importante: ao abordar aquilo que nos faz sermos o que somos, a colonização emerge como um fenômeno em curso, e as suas instituições sociais – o patriarcalismo e o racismo – formam o contexto que desafiam o nosso livre-arbítrio.
“Com Cães, eu quis então me desvencilhar de vez da adolescência”, assegura Júlia. “É um período em que tudo parece muito fatal e muito urgente. Criar personagens e praticar a escrita na terceira pessoa era uma tentativa de praticar a alteridade e romper um pouquinho com o narcisismo infantil. Eu considero ‘Cães’ um texto bastante estável, embora manifeste todo frescor e toda fragilidade de uma primeira publicação. Quando eu enviei o original do livro para Laerte, eu escrevi: esta é uma despedida da adolescência.”
Laerte
Através do cartunista João Montanaro, da Folha, a escritora baiana acabou conhecendo e se relacionando com Laerte, cartunista dos mais renomados. “Viramos amigas, surpreendentemente amigas”, relata a autora. “Acho que é com ela que eu compartilho as dimensões mais basilares da minha vida íntima”, confidencia.
Laerte era quem lia muitos dos seus textos em produção. “Ela costuma ser sempre uma das primeiras a ler o que eu escrevo”, diz Júlia, que se orgulha. “Todos os meus trabalhos passam pelo crivo dela”. Como não poderia ser de outra forma, é Laerte quem assina o texto do livro.
Diz a cartunista: “As primeiras mensagens que troquei com a Julia são de 2015. Não lembro quem fez a ponte – acho que o João Montanaro. Sei que desde o primeiro e-mail me senti fisgada pela sua escrita copiosa e inquieta. Passei a aguardar esses e-mails mais ou menos como aguardava as aventuras de outra Julia, uma de quadrinhos que saía a cada 2 meses. Os e-mails da Julia real tinham a vantagem de serem mais frequentes; em comum com os quadrinhos, exigiam e permitiam uma leitura extensa. Logo ela se tornou, pra mim, algo daquilo de que me cerco pra perceber o mundo de forma mais atenta. E eu vi uma escritora surgindo na minha frente, nas mensagens, nos ensaios e nos textos que ia me enviando também.”
Laerte termina seu texto assim: “Eu vejo essa Julia crescendo enquanto escreve. Estar pronta, no caso da Julia, é estar sempre se transformando.”
Tanto é verdade o apreço da artista pela escritora, que numa entrevista recente Laerte fez uma recomendação de leitura na pandemia mencionando o romance de estreia de sua amiga.
Sobre Júlia Grilo
Romancista, ensaísta e cronista, Júlia Grilo nasceu em Salvador. Enredada na cibercultura, aos 10 anos já assimilava a linguagem internética e, através da escrita em blogues, conseguiu formar as bases de sua estética, marcada pelo coloquialismo, pela rapidez e, sobretudo, pela ruptura com a escrita convencional. Escreveu seu primeiro livro aos 15 anos: um ensaio sobre a escola a partir de sua perspectiva estudantil (aliás, este texto, nomeado Perdemos o futuro, é a gênese essencial de seu projeto literário e configura os pilares de sua escrita). Aos 17, a autora finalizou Deserção, seu primeiro romance, que ainda permanece inédito. Cães (2020) é seu livro de estreia. Atualmente, Júlia vive em Salvador, onde se gradua em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia.