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Peter Pan (J.K. Barrie): um espectro, um desejo…

Peter Pan é um clássico da literatura infantil e mais um caso em que a criatura se tornou maior que o criador. Afinal, o que você sabe sobre o autor da história? E o que você sabe sobre Peter Pan?

Como todo livro infantojuvenil, há uma diferença entre a forma em que os leitores interagem e reagem em relação à obra, pois crianças, adultos e adolescentes possuem um jeito diferente de ver, entender e interpretar o mundo. E cada uma dessas formas é o que se constrói enquanto ser humano – com todas as suas bagagens e particularidades. Ou seja, Peter Pan para crianças pode ser uma história de um menino sem família e que vive grandes aventuras na Terra do Nunca. Para um jovem leitor, pode ser a oportunidade de encarar um livro com diversos personagens, aventuras e tudo que engloba o universo fantástico. Para um adulto, ler Peter Pan é mergulhar no passado da própria infância, é ficar nostálgico com uma criança lutando com “grandes inimigos” e estranhar MUITO a forma como os personagens – adultos e crianças se relacionam e se desenvolvem na obra.

Peter Pan: um clássico

Sinopse: Peter and Wendy – ou Peter Pan –, publicado em 1911, narra a clássica história dos irmãos Darling, Wendy, João e Miguel, que acompanham Peter Pan em uma viagem pela Terra do Nunca, onde convivem com índios e sereias, estranhos animais, enfrentam o Capitão Gancho e seus piratas, além de muitos outros perigos.

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Peter Pan e o autor J.M Barrie

Barrie (1860 – 1937) nasceu na Escócia e se torno um dramaturgo com várias peças de sucesso. Peter Pan (e Wendy), a princípio, era uma de suas peças de teatro. Foi em 1911 que o autor transformou a peça em um livro para crianças.

A origem de toda a história possui marcas relacionadas à sua infância e vida adulta. Seu irmão mais velho morreu muito jovem em um acidente patinando no gelo, o que deixou a mãe de Barrie muito abalada. E, claro, reverberou no garoto Barrie. Já adulto, ajudou na criação dos filhos de uma grande amiga e, um deles, se chamava Peter. Assim, a partir das histórias que ele contava para essas crianças, surgiu Peter Pan.

Leia também: País das Maravilhas, Terra do Nunca e o Reino de Nárnia…

Os personagens adultos – e estranhos!

Quando a história começa, somos apresentados à estranha família Darling. Uma família tradicional: pai, mãe e 3 filhos. O pai, representação do patriarcado (o provedor da família, o trabalhador…), em diversos momentos se comporta como uma criança mimada, pois mal consegue dar um nó em sua própria gravata e faz um escândalo sobre isso. A mãe, representando todo o padrão da maternidade, ultrapassa alguns pontos éticos da sociedade, pois à noite, ela olha dentro da cabeça de seus filhos para ver se encontrar lembranças indesejadas. Há todo um sentido de proteção materno ao mesmo tempo em que coloca a mãe em um papel manipulador. Neste ponto inicial da história, com a força da narração de Barrie – que é muito poderosa – o leitor já vai se familiarizar com elementos fantástico que irão se intensificar mais ao longo da obra. Temos dois pontos principais: a representação de uma família comum amarrada a elementos fantásticos, como a babá que é um cachorro.

“A Sra. Darling ouviu falar de Peter Pan pela primeira vez quando estava arrumando a cabeça dos filhos. É um costume noturno de toda boa mãe entrar nas cabeças dos filhos depois que eles dormem e remexer em suas mentes a fim de organizar as coisas para a manhã seguinte. Recolocam em seus devidos lugares o que foi bagunçado durante o dia.”

p. 11

As crianças e as entrelinhas

O livro Peter Pan possui um tema comum e que ainda precisa ser desvendado em inúmeras esferas, que é a transformação. Transformar-se ou não transformar-se em um adulto? Ser ou não ser uma criança para sempre? As crianças precisam ser independentes? O ser humano em todas as suas fases está preparado para a próxima transformação? É possível viver sem se transformar? São essas perguntas e tantas outras que permeiam a obra de J.M. Barrie de uma forma que provoca, instiga e gera no leitor uma grande interrogação.

Para as crianças, ir para a Terra do Nunca é uma grande aventura rumo ao desconhecido. E isso já basta para a história se tornar grandiosa. Então, quando Wendy e seus irmãos recebem a visita de Peter Pan, nele está a possibilidade da novidade, de algo realmente novo acontecer em suas vidas. Mas nas entrelinhas, a figura de Peter Pan representa uma ambiguidade: o desejo de confrontar os pais – e fugir de casa, e ser independente com o desejo de ser criança para sempre.

“… estava tão cheio de ódio contra os adultos – que, como de costume, estavam estragando tudo – que, logo que entrou em sua árvore, respirou bem rápido de propósito, mais ou menos cinco respirações por segundo. Fez isso porque há um ditado na Terra do Nunca que diz que cada vez que você respira, um adulto morre; e Peter estava matando adultos o mais rápido possível, porque queria se vingar.”

p. 122

Papeis sociais de uma época e o tempo

O contexto a qual a história de Peter Pan está inserida, infelizmente, contém elementos tradicionais e enraizados em uma cultura em que o patriarcado ditava todas as regras. Então, ler Peter Pan é também mergulhar nos papeis sociais de uma época em que a mulher e as meninas na literatura eram apenas estereótipos, limitadas ao trabalho do lar, ao amor pelo homem e ao ciúmes.

Wendy, tão dócil, é a menina que possui o instinto maternal e cuida de Peter e as outras crianças perdidas como se fosse mãe deles. Sininho, a fada, representa a mulher ciumenta e amargurada. Já a mãe de Wendy, a Sr. Darling é a mistura da boa mãe e da boa esposa. E essas três figuras são fundamentais para a construção de Peter Pan como personagem, afinal, o seu grande desejo em ser criança para sempre esbarra, de um modo obscuro, em negar as figuras maternas, tratar Sininho de modo rude e depositar suas esperanças em conseguir uma mãe para seus amigos em Wendy. De certo modo, ele anula as mulheres que fazem parte de sua vida porque é movido pela arrogância, pelo desejo em ser uma criança eterna, não levando em consideração o elemento tempo, que não para, que transforma tudo à sua volta e também a si mesmo.

“O que o não o deixou ir embora foi a aparência impertinente de Peter enquanto dormia. A boca aberta, o braço largado, o joelho arqueado: tudo isso era uma tal personificação de arrogância que, espero, algo assim nunca mais seja visto por olhos tão sensíveis a uma ofensa como essa.”

p. 137

Capitão Gancho: um grande antagonista

E como definir o personagem Capitão Gancho? O grande inimigo de Peter Pan possui características do homem adulto da época, da sociedade, da política, do clero… Mesmo sendo um pirata, ele é descrito como um homem muito bem articulado, educado e com uma certa ética perante a forma como trata os seus inimigos.

“Nos seus modos, ainda havia algo de um grande cavalheiro, então ele estraçalhava seus inimigos com um ar de grandeza; e me disseram que ele era um racounter (contador de histórias) de renome. Quanto mais educado era, mais sinistro ele parecia, o que provavelmente caracterizava o verdadeiro aristocrata; e a elegância de sua dicção, mesmo quando estava xingando, assim como a distinção de seu comportamento, mostravam que era diferente de sua tripulação. Um homem de coragem indomável…”

p. 60

Assim, Capitão Gancho é um personagem que funciona perfeitamente à história por ser o oposto de Peter Pan. E os encontros entre os dois é como um duelo de personalidades ao ponto de do leitor desconfiar o quanto um é parecido com o outro, apesar de viverem em supostas realidades tão diferentes…

E quem é Peter Pan? E por que essa história ainda faz tanto sucesso?

Peter Pan não é uma criança e Peter Pan não é um adulto. Peter Pan é um espectro, um desejo de todos nós que se perde por aí. E vai parar na Terra do Nunca.

A admiração por Peter Pan vem fácil porque um dia fomos como ele em toda a sua essência. Ele é corajoso, destemido e encara sua aventuras, mesmo perigosas, com brilho nos olhos. Mas, ao mesmo tempo, Peter é envolvido por uma solidão devastadora, embora seja compensando por não ter uma memória muito longa…

Peter Pan é um personagem grandioso e, por ter muitas camadas, acaba sendo contraditório – e riquíssimo justamente por isso. Todos guardam um pouquinho de Peter Pan dentro de si, sendo este o principal motivo de sua história ainda fazer tanto sucesso e trazer tantas reflexões para crianças, jovens e adultos.

Assista ao vídeo no canal Livro & Café:

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