Historicamente o primeiro grande poeta do Brasil, do período Barroco, Gregório de Matos Guerra nasceu em 1633, na cidade de Salvador, na Bahia, e sua obra, principalmente a satírica, faz alusão a duas de suas maiores referências: Brasil e Portugal.

    “Para entender a obra do autor, é preciso, primeiro, saber quem foi Gregório de Matos Guerra”, afirma o ensaísta e crítico literário João Adolfo Hansen, professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e autor de A Sátira e o Engenho, considerado o mais completo estudo sobre Gregório de Matos e a Bahia do século 17. O livro Poemas Escolhidos, de Gregório de Matos, integra a lista de leituras exigidas para o vestibular da Fuvest (Fundação Universitária para o Vestibular).

    Quem foi Gregório de Matos?

    Filho de um fidalgo português que se tornou senhor de engenho no Recôncavo Baiano com uma brasileira, Gregório de Matos se formou em Direito na Universidade de Coimbra, Portugal. “Único local em que se pode ver sua assinatura, no livro de matrículas”, informa Hansen. Embora não se saiba muito sobre sua vida, acredita-se que ele tenha chegado a trabalhar como juiz na cidade de Alcácer do Sal, em Portugal. “Nesse tempo, tinha um hábito que divertia as pessoas. Ele ditava as sentenças dos processos em versos, geralmente indecentes e pornográficos. Mas é preciso levar em conta a moral aristocrática do século 17 e a moral burguesa de hoje”, diz o professor.

    Em 1682, foi nomeado pelo rei português para ocupar um cargo eclesiástico em uma igreja de Salvador, mas, ao descobrir que precisaria fazer voto de castidade, desistiu. Abriu uma banca de advogado em Salvador e casou-se com Dona Maria dos Povos, com quem teve um filho, Gonçalo. Nessa fase passou a escrever cada vez mais poesias satíricas e eróticas, onde expõe sem nenhum pudor a sociedade da época, o que lhe rendeu o apelido “Boca do Inferno”. Segundo o professor, esse nome tinha um duplo sentido, porque saíam de sua boca tanto a obscenidade quanto os pecados da humanidade. Não se sabe também por que, em 1685, foi degredado para Angola e, de volta ao Brasil, em 1696, fixa-se em Recife, onde morre em 26 de novembro daquele ano.

    Muitos em um

    Segundo Hansen, há vários Gregórios, dependendo do foco das leituras, como o que viveu no século 17 e o que ficou famoso postumamente. “Às vezes, a fama de poeta pornográfico, crítico e satírico é muito maior do que o próprio exame da poesia que se atribui a ele”, comenta. Até hoje, Gregório de Matos é tido como poeta libertário, com uma obra subversiva, mas, para Hansen, quando se examina o contexto do século 17, percebe-se que é extremamente convencional.

    “É preciso analisar que Gregório de Matos Guerra viveu em uma sociedade não burguesa e não democrática, e que a sátira é um ataque de vícios e viciosos, muito comum naquela época”, explica. Outra questão é acerca da atribuição dos poemas – no período colonial era corriqueiro atribuir obras a alguém famoso, diferente dos tempos atuais, em que o nome garante direitos autorais e de propriedade privada sobre a obra. “Muitas vezes o poema é anônimo e atribuído ao poeta Gregório de Matos, que não era um nome propriamente, mas a classificação de um gênero, a sátira”, completa.

    “Essa poesia tem um valor poético, de padrões artísticos do século 17, e simultaneamente põe em cena valores da sociedade portuguesa antiga, que são transformados nos trópicos, na colonização do Brasil, incluindo temas locais. Nesse sentido, tem um valor histórico porque traz várias referências”, diz o professor. “Gregório de Matos foi lido e transformado desde o século 19, quando o cônego carioca Januário da Cunha Barbosa publicou dois de seus poemas, até o Tropicalismo de Caetano Veloso, em que o poeta se torna uma espécie de baiano tropicalista”, relata o professor.

    A poesia quando a leitura era proibida

    Gregório de Matos não publicou nada em vida, de forma impressa. No século 17, a leitura era proibida – muitos eram os iletrados – e o livro circulava como um objeto raríssimo e caro, com folhas feitas de trapo (pano). “Era comum o poema ser composto nessa folha, e na sátira, por exemplo, era extremamente rotineiro alguém escrever à noite e, de madrugada, aquela folha ser pregada com cola de farinha de mandioca na porta da igreja. Alguém que sabia ler declamava em voz alta e, como eram facilmente memorizáveis, os versos eram utilizados para a produção de novos poemas”, conta Hansen.

    Na época, como lembra o professor, isso produziu uma grande quantidade de poemas circulando na oralidade e na memória, que necessariamente não eram escritos. “Mas, quando eram escritos, o letrado copiava nessa folha de papel, de tamanho variado, pequenos ou grandes, ou ainda usava folhas que já tinham sido escritas – eles raspavam com pedra pome e reescreviam”, explica Hansen, relatando ainda que havia o hábito de colecionarem essas folhas, que eram costuradas, formando cadernos, chamados de códices.

    O professor cita o códice pertencente a Manuel Pereira Rabelo, um letrado do século 18, que deu origem à antologia da poesia de Gregório de Matos, publicada em sete volumes, em 1968, por James Amado (irmão de Jorge Amado), em parceria com a professora baiana Maria da Conceição Paranhos. “No auge da ditadura militar, um general mandou apreender mil coleções (7 mil livros), para queimar em praça pública, mas, advertido por um intelectual da Bahia de que os militares, além de fascistas, seriam também considerados nazistas, acabou voltando atrás. Isso produziu uma certa fama do Gregório como ‘poeta maldito’”.

    O Códice Rabelo é, provavelmente, como diz o professor, a fonte para o livro que passa a integrar o vestibular de 2020 da Fuvest, Poemas EscolhidosA clássica coletânea foi preparada nos anos 70 pelo professor José Miguel Wisnik, também da FFLCH, e ganhou nova edição revista pelo organizador. Editada pela Companhia das Letras, a seleção traz os melhores poemas de Gregório de Matos nas diversas modalidades, incluindo notas de esclarecimento, um pequeno perfil biográfico do poeta e uma análise crítica de sua obra.

    gregório de matos

    Em 2013, Hansen e seu então orientando Marcelo Moreira publicaram, pela Editora Autêntica, cinco volumes de cerca de 500 páginas com os manuscritos de Gregório de Matos – quatro deles com a transcrição da poesia e o quinto com um estudo dos critérios históricos de definição dessa poesia. O professor conta que os códices pertenciam ao espanhol Eugenio Asensio, que os deu de presente ao gramático carioca Celso Cunha, e que foram doados, depois de sua morte, pela família à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e foram localizados na biblioteca da universidade, na Ilha do Fundão.

    Gregório de Matos: o poeta do Barroco

    Tido como poeta do Barroco – apesar do conceito ser instituído somente no século 20 para definir um período do século 17, como alerta o professor para os vestibulandos –, Gregório de Matos passeava por dois tipos de poesia: lírica e satírica. O primeiro, como explica Hansen, tem formas italianas, com sonetos de 14 versos, e possui uma lírica amorosa ou religiosa. “A lírica amorosa surge através da declaração de amor de um homem para uma dama, e traz a descrição da beleza da mulher, imitando formas de outros poetas nesse gênero, como Camões, Góngora, Quevedo e Petrarca.” Já a poesia lírica religiosa “é um elogio aos santos da Igreja Católica, como a Virgem Maria, que salva o poeta do pecado, e de Jesus Cristo, mas, principalmente, seu sofrimento na cruz”, comenta Hansen.

    “Esse corpus poético também tem muita poesia cômica na variante da sátira”, ressalta, explicando que a sátira de Gregório de Matos evidencia a referência a dois poetas romanos: Horácio (século 1 a.C.), quando se trata do ridículo, a partir de brincadeiras e jogos de palavras, e Juvenal (século 1 da era cristã), que se refere a vícios, agressões, obscenidades e até pornografia. Essa última, segundo Hansen, trata dos pecados mortais, como a luxúria, a gula, a corrupção, sempre com a ideia de sarcasmo.

    Conheça abaixo 7 poesias de Gregório de Matos

    1. Contemplando nas cousas do mundo

    Neste mundo é mais rico, o que mais rapa:
    Quem mais limpo se faz, tem mais carepa:
    Com sua língua ao nobre o vil decepa:
    O Velhaco maior sempre tem capa.

    Mostra o patife da nobreza o mapa:
    Quem tem mão de agarrar, ligeiro trepa;
    Quem menos falar pode, mais increpa:
    Quem dinheiro tiver, pode ser Papa.

    A flor baixa se inculca por Tulipa;
    Bengala hoje na mão, ontem garlopa:
    Mais isento se mostra, o que mais chupa.

    Para a tropa do trapo vazio a tripa,
    E mais não digo, porque a Musa topa
    Em apa, epa, ipa, opa, upa.

    2. A Bahia

    Tristes sucessos, casos lastimosos,
    Desgraças nunca vistas, nem faladas.
    São, ó Bahia, vésperas choradas
    De outros que estão por vir estranhos

    Sentimo-nos confusos e teimosos
    Pois não damos remédios as já passadas,
    Nem prevemos tampouco as esperadas
    Como que estamos delas desejosos.

    Levou-me o dinheiro, a má fortuna,
    Ficamos sem tostão, real nem branca,
    macutas, correão, nevelão, molhos:

    Ninguém vê, ninguém fala, nem impugna,
    E é que quem o dinheiro nos arranca,
    Nos arrancam as mãos, a língua, os olhos.

    3. Aos caramurus da Bahia

    Um calção de pindoba, a meia zorra
    Camisa de urucu, mantéu de arara,
    Em lugar de cotó arco e taquara
    Penacho de guarás em vez de gorra.

    Furado o beiço, e sem temor que morra
    O pai, que lho envasou c’uma titara
    Porém a Mãe a pedra lhe aplicara
    Por reprimir-lhe o sangue que não corra.

    Alarve sem razão, bruto sem fé,
    Sem mais leis que a do gosto, quando erra
    De Paiaiá tornou-se em abaité.

    Não sei onde acabou, ou em que guerra:
    Só sei que deste Adão de Massapé
    Procedem os fidalgos desta terra.

    4. O poeta descreve o que era naquele tempo a cidade da Bahia

    A cada canto um grande conselheiro,
    Que nos quer governar cabana e vinha;
    Não sabem governar sua cozinha,
    E podem governar o mundo inteiro.

    Em cada porta um bem frequente olheiro,
    Que a vida do vizinho e da vizinha
    Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha,
    Para o levar à praça e ao terreiro.

    Muitos mulatos desavergonhados,
    Trazidos sob os pés os homens nobres,
    Posta nas palmas toda a picardia,

    Estupendas usuras nos mercados,
    Todos os que não furtam muito pobres:
    E eis aqui a cidade da Bahia.

    5. Buscando a Cristo

    A vós correndo vou, braços sagrados,
    Nessa cruz sacrossanta descobertos
    Que, para receber-me, estais abertos,
    E, por não castigar-me, estais cravados.

    A vós, divinos olhos, eclipsados
    De tanto sangue e lágrimas cobertos,
    Pois, para perdoar-me, estais despertos,
    E, por não condenar-me, estais fechados.

    A vós, pregados pés, por não deixar-me,
    A vós, sangue vertido, para ungir-me,
    A vós, cabeça baixa, p’ra chamar-me,

    A vós, lado patente, quero unir-me,
    A vós, cravos preciosos, quero atar-me,
    Para ficar unido, atado e firme.

    6. A uma dama

    Dama cruel, quem quer que vós sejais,
    Que não quero por hora descobrir-vos,
    Dai-me licença agora para arguir-vos,
    Pois para amar-vos sempre ma negais:

    Por que razão de ingrata vos prezais,
    Não me pagando o zelo de servir-vos?
    Sem dúvida deveis de persuadir-vos,
    Que a ingratidão aformoseia mais.

    Não há cousa mais feia na verdade:
    Se a ingratidão aos nobres envilece,
    Que beleza fará, o que é fealdade?

    Depois, que sois ingrata me parece,
    Que hoje é torpeza o que era então beldade,
    Que é flor a ingratidão que em flor fenece.

    7. A uma freira, que satirizando a delgada fisionomia do poeta lhe chamou “Pica-flor”

    Se Pica-flor me chamais,
    Pica-flor aceito ser,
    mas resta agora saber,
    se no nome, que me dais,
    meteis a flor, que guardais
    no passarinho melhor!
    Se me dais este favor,
    sendo só de mim o Pica,
    e o mais vosso, claro fica,
    que fico então Pica-flor. 

    Referências: Jornal da USP, texto de Claudia Costa


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