É muito bom quando o cinema brasileiro se destaca internacionalmente. Melhor ainda quando sabemos que o filme foi inspirado em um livro! A obra de Marcelo Rubens Paiva, “Ainda estou aqui”, traz um Brasil ainda vivo e discute o tema da memória em diversas formas.
“Ainda Estou Aqui” é um livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva que narra a luta de sua mãe, Eunice Paiva, para descobrir o paradeiro de seu marido, o deputado Rubens Paiva, durante a ditadura militar no Brasil. O título também é um referência à doença de Eunice Paiva que ao final de sua vida foi acometida pelo Alzheimer.
Conheça abaixo uma seleção das melhores frases do livro “Ainda estou aqui”:
1.
“A memória é uma mágica não desvendada. Um truque da vida.”
2.
“Às vezes sorridente. Às vezes furiosa. Sempre surpreendente.”
3.
“Existir é passar de um estado para outro: tenho fome, como, tenho frio, me agasalho, estou alegre, e agora triste, e depois estarei aelegre, penso e chego a conclusões, me lembro de algo que me toca o coração, sinto um cheiro que me lembra alguém, sinto um gosto que me lembra um lugar, me emociono.”
4.
“A tática do desaparecimento político é a mais cruel de todas, pois a vítima permanece viva no dia a dia. Mata-se a vítima e condena-se toda a família a uma tortura psicológica eterna. Fazemos cara de forts, dizemos que a vida continua, mas não podemos deixar de conviver com esse sentimento de injustiça.”
5.
“[Eunice] nunca se deixou cair no piguismo, não perdeu o controle diante das câmeras, nem vestiu uma camiseta com o rosto do marido desaparecido. Não culpo esse ou aquele, mas o todo. Não temeu pela vida. Lutou com palavras.”
6.
“Quem tem Alzheimer em estado avançado está lá, mas não está, é a pessoa, mas não é. Pensa de uma forma peculiar; talvez tais pensamentos façam algum sentido, talvez ela tenha se acostumado com a confusão deles; ou talvez deixe de pensar, já que eles não se concluem.”
7.
“A tortura é um regimo, um estado. Não é o agente fulano, o oficial sicrano, quem perde a mão. É a instituição e sua rede de comando hierárquica que torturam. A nação que patrocina. O poder, emanado pelo povo ou não, suja as mãos.”
8.
“A acumulação do passado sobre o passado prossegue até o nosso fim, memória sobre memória, através de memórias que se mistural, deturpadas, bloqueadas, recorrentes ou escondidas, ou reprimidas, ou blindadas por um institnto de sobrevivência. Uma fogueira no alto ajudaria. Mas ela se apaga com o tempo. E não conseguimos navegar de volta pata casa.”
9.
“Não faríamos o papelão de sairmos tristes nas fotos. Nosso inimigo não iria nos derrubar. Família Rubens Paiva não chora na frente das câmeras, não faz cara de coitada, não se faz de vítima e não é revanchista. Trocou o comando, continua em pé e na luta. A família Rubens Paiva não é vítima da ditadura, o país que é.”
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10.
“Eu deveria vingar a morte do meu pai? Comprar um revólver e ir, de um em um, atirar na cabeça? Com dezessete, dezoito, dezenove anos eu não era maluco o suficiente para partir para a guerra. Era da paz. Era um pacifista. Alguns nomes dos torturadores envolvidos já tinham sido divulgados nas declarações oficiais do próprio Tribunal Militar. Bastava consultar o catálogo telefônico do Rio de Janeiro e ir de um em um, sabe quem eu sou?, pá, sabe de quem eu sou filho?, pá, olha pra mim, pá. Mas lutar pela democratização seria uma vingança mais efetiva, e esperar que a Justiça numa nova democracia fizesse a sua parte. O que espero até hoje.”
11.
“Não, não é sua mãe, é outra pessoa, sua mãe não diria aquilo. Era a falta dela em seu próprio corpo. Era o seu apagar que agia com brutalidade nos gestos e nas palavras.”
12.
“A memória não é a capacidade de organizar e classificar recordações em arquivos. Não existem arquivos. A acumulação do passado sobre o passado prossegue até o nosso fim, memória sobre memória, através de memórias que se misturam, deturpadas, bloqueadas, recorrentes ou escondidas, ou reprimidas, ou blindadas por um instinto de sobrevivência. Uma fogueira no alto ajudaria. Mas ela se apaga com o tempo. E não conseguimos navegar de volta para casa.”
13.
É uma confusão recorrente de quem tem um parente com Alzheimer: falar dele no passado. Antes, eu sentia uma culpa sem fim por enterrar na conjugação verbal alguém que está vivíssimo e presente. Parecia um golpe do inconsciente, um lapso proposital, um desejo reprimido.
Quem tem Alzheimer em estado avançado está lá, mas não está, é a pessoa, mas não é. Pensa de uma forma peculiar; talvez tais pensamentos façam algum sentido, talvez ela tenha se acostumado com a confusão deles; ou talvez deixe de pensar, já que eles não se concluem.
14.
Me fechei. Meu olhar ficou triste, como o de nenhum outro moleque. Muitos passaram a me evitar. Eu era filho de um terrorista que atrapalhava o desenvolvimento do país, eles aprendiam com alguns pais e professores, liam na imprensa, viam nos telejornais. Meu pai era membro “do Terror”! Em 1971, eu ficava muito tempo sozinho no banco da escola. Aos poucos amigos, eu tentava explicar que meu pai não era bandido. A maioria não tinha ideia do que se passava. A censura e o milagre brasileiro cegavam.”
15.
“Um dia fiz uma descoberta incrível: nunca dancei com a minha mãe. Nunca a abracei de verdade. Nunca rolei com ela fazendo cócegas. Nunca gargalhamos juntos. Nossa relação era como as regras que me ensinava, protocolar. Talvez ela tivesse lido num manual como se relacionar com filhos. Um manual de etiqueta, com um capítulo sobre como abrir as portas, cruzar talheres, tirar a dona da festa para dançar. Até nossas conversas eram secas, diretas, objetivas. Nunca pude lhe pedir conselhos sobre garotas, numa adolescência que chegava sem escalas.”
16.
Ela acenava para os carros alegóricos, com strippers dançando uma música de boate (pancadão). Ela acenava, eles respondiam. Ela chorava. Acenava e chorava, emocionada, enquanto eles mandavam beijos e rebolavam. Foi das poucas vezes que a vi chorar. Minha cabeça não encontra uma explicação razoável para isso. Talvez nem ela conseguisse explicar. É daquelas peças que o Alzheimer apronta e que sempre surpreende. Doença que não apenas afeta a memória, mas embaralha emoções, enaltece desagrados que não existem, muda o humor até do mais calculista dos matemáticos.
17.
“Memória lembra dunas de areia, grãos que se movem, transferem-se de uma parte a outra, ganham formas diferentes, levados pelo vento.”
Sobre Marcelo Rubens Paiva
Marcelo Rubens Paiva é um escritor e jornalista brasileiro, conhecido por suas obras marcantes que misturam autobiografia, ficção e crítica social. Nascido em 1º de maio de 1959, em São Paulo, ele ganhou notoriedade com seu primeiro livro, “Feliz Ano Velho” (1982), um relato autobiográfico que aborda o acidente que o deixou tetraplégico.
Imagem em destaque: Cena do filme “Ainda Estou aqui”