O choro recebeu o reconhecimento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
“O choro não sobreviveu graças aos grandes ícones, Jacob, Altamiro, Waldir. Ele sobreviveu por causa daquela turminha que tocava no quintal, tocava nas esquinas, os grandes músicos anônimos dos bairros. Isso é muito lindo, saber que é uma música que resistiu, resiste, está mais forte do que nunca (…). Mas é lindo lembrar isso, que o choro é uma música de confraternização, de amigos, uma música popular, você não precisa ser um virtuose para tocar [choro]. Com o pouquinho que você sabe, dá para tocar e fazer as pessoas felizes. Trazer aquele alimento para o grupo de pessoas que está ali. O choro só segurou essa onda porque foram pessoas anônimas, que a gente não sabe quem são, que seguraram.”
Essas são palavras do flautista e professor aposentado do Departamento de Música da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP Toninho Carrasqueira. Estão presentes na Instrução Técnica do Processo de Registro do Choro como Patrimônio Cultural do Brasil, um documento que serviu como dossiê para o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que no último dia 29 de fevereiro declarou o choro Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil.
Detalhando essa mesma visão, Carrasqueira, agora em entrevista para o Jornal da USP, conta que o choro, em sua origem na segunda metade do século 19, “era tocado por músicos profissionais e também, e sobretudo, como música de confraternização por pessoas da nova classe de trabalhadores surgida com o fim da escravatura institucional: funcionários públicos, ferroviários, carteiros, entre outros”. Ou seja, a população da baixa classe média, como atesta outro dos importantes nomes na pesquisa sobre o choro, José Ramos Tinhorão, em alguns de seus livros.
Tinhorão chama a atenção para a melhora do quadro econômico do Brasil no período, proporcionando a multiplicação de obras e negócios no Rio de Janeiro. Isso significou a disseminação de variados postos de trabalho, tanto públicos como privados. Esses novos trabalhadores não ocupavam um lugar bem delimitado na antiga divisão entre senhores e escravizados. Portanto, procuravam formas de participação que marcassem seus lugares na sociedade.
Os mais bem situados entre esses trabalhadores frequentavam espetáculos do café-cantante Alcazar Lyrique, movidos pelo fervor de sonhos parisienses. Já a maioria, representada principalmente pelos funcionários públicos das camadas mais modestas, festejava suas alegrias nos bailes em casas de família, animados por músicos geralmente amadores. Os anfitriões não chegavam a ser pobres à beira da miséria, que nem teriam onde abrigar festas e seus convidados. Eram os que França Júnior, jornalista citado por Tinhorão, chamava de terceira classe.
Podemos sentir um pouco do que eram esses bailes lendo descrições de França Júnior em trechos de sua crônica chamada Bailes: “Têm por teatro uma casa térrea, de rótula e janela, em cujos peitoris há sempre uma fila de espectadores, que aprovam e reprovam, comentam e ampliam o que veem lá dentro; sendo necessária muitas vezes a intervenção policial para impedir conflitos. […] A sala recende a água florida, e a essência de canela e alfazema. […] A música, que compõe-se de flauta, violão e rabeca, é executada por amadores. […] Os cavalheiros trajam calça flor de alecrim e paletó alvadio; as damas, cores tão fortes como os perfumes que usam”.
Outra das fontes sobre os primeiros anos de choro no Brasil é um de seus personagens, Alexandre Gonçalves Pinto, o Animal, que testemunhou os bailes animados à música desde os idos de 1870. Em 1936, ele reuniu essas memórias no livro O choro – reminiscências dos chorões antigos. Tornou-se publicação obrigatória para as pesquisas posteriores.
Ali, aparecem figuras que marcaram o desenvolvimento do agora patrimônio nacional. E seus nomes, suas profissões, seus instrumentos, o jeitão de cada um e a atmosfera “daquelas festas simples onde imperava a sinceridade, a alegria espontânea, a hospitalidade, a comunhão de ideias e a uniformidade da vida”, nas palavras francas e transparentes de Animal.
Roteiro para Patrimônio
Foi no ano de 2012 que o Clube do Choro de Brasília tomou a iniciativa de propor o reconhecimento do choro como Patrimônio Cultural Imaterial. Contando com a adesão de outros núcleos ligados ao choro, como a Casa do Choro do Rio de Janeiro, o Conservatório de Música de Recife, o Clube do Choro de Santos e a Escola de Choro de Porto Alegre, a proposta enviada ao Iphan recebeu a aprovação que, a partir de 2015, desencadeou o processo administrativo que encaminha o registro oficial. Depois de tramitações e paralisações, contando com a pandemia de covid-19 no meio do caminho, as pesquisas e a mobilização de uma extensa rede de espaços e personagens vinculados ao choro foram sendo tecidas. O dossiê produzido, que recebe o nome de Instrução Técnica do Processo de Registro do Choro como Patrimônio Cultural do Brasil, fica disponível e congrega um rico conjunto de informações (https://www.gov.br/iphan/pt-br/assuntos/noticias/DossietcnicodoChoro.pdf).
Lúcia Campos é professora e pesquisadora da Universidade do Estado de Minas Gerais, e foi uma das coordenadoras da pesquisa para o registro do choro como patrimônio cultural do Brasil. Pensando nessa prática cultural que ressoa há mais de 150 anos pelo País, ela explica a importância da iniciativa: “Uma pergunta com a qual nos deparamos frequentemente durante a pesquisa foi: ‘Mas o choro já não é patrimônio?’. É uma questão fundamental. O choro já é considerado ‘patrimônio’ pelas pessoas que o praticam ou que o escutam, de norte a sul do Brasil, mas esse reconhecimento pelo Estado brasileiro tem importância crucial para a valorização dessa prática musical em todas as suas dimensões”.
Alguns exemplos de impactos que o reconhecimento como patrimônio cultural tem são o desenvolvimento de políticas públicas para a salvaguarda do choro, com programas e cursos em escolas públicas, a criação de editais para aquisição de instrumentos e a promoção das rodas de choro em locais públicos, fortalecendo o desenvolvimento de formas de transmissão, além de promover pesquisas e valorização de acervos.
“Os desdobramentos em termos de ações institucionais podem acontecer de diversas formas, na interlocução entre as comunidades do choro e as prefeituras, os Estados e também as políticas públicas de abrangência nacional”, completa Lúcia. Ela destaca que um importante desdobramento, já em curso, é o lançamento da Base de Dados do Choro. “Trata-se de um inventário público e colaborativo, a ser continuamente atualizado pelos chorões e choronas de todo o Brasil”, explica. Pode ser acessada e divulgada à vontade (https://acervosvirtuais.ufpel.edu.br/choropatrimonio/).
É promissora a visão da Base da Dados e de sua amplitude. Lá, estão agrupadas informações sobre acervos, ações de ensino, associações e clubes, rodas e locais de performance, discografia, pesquisas e publicações. E isso somente com o material listado até o momento. Quem tem uma roda de choro na vizinhança já deve estar imaginando quanto ainda está por ser registrado nesse espaço cheio de potencialidades.
Inventando o choro
Há quem ache aborrecida a conversa sobre possíveis origens e derivações do termo “choro”. Não é o caso do autor deste texto. Pelo contrário, parecem-me fascinantes essas escavações que juntam ossinho daqui, fragmento dali, e vão formando hipóteses tão saborosas quanto as ruínas de uma cidade milenar. Os vestígios da palavra atiçam o escavador a desenterrar também as possíveis concepções do que as pessoas entendiam quando se falava em “choro” ao longo do tempo. Spoiler: continuam havendo diversas maneiras de entender “choro” hoje em dia, o que é considerado parte da complexidade e riqueza desse patrimônio. Enfim, se essa conversa é aborrecida ou saborosa, tire sua própria conclusão ao final.
Comecemos evocando Mário de Andrade. No verbete de seu Dicionário Musical Brasileiro, ele menciona a concepção de choro como agrupamento musical puramente instrumental, no qual se procurava reunir instrumentos solistas com outros a tocar acompanhamento, ou simplesmente orquestra. É o que se vê em discos das primeiras décadas do século 20: Carmen Miranda com acompanhamento de choro e coro, por exemplo. Também já aparecem, nos discos, indicações de choro como forma, gênero musical. Mário de Andrade destaca algumas dessas menções, como quando aparece o nome da música seguida do termo choro: O urubu e o gavião: choro.
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O literato e musicólogo, em pequena nota, lembra que antigamente já se grafou “coro” como “choro”, sugerindo que essa concepção estaria próxima da noção de solo. E recorte do jornal O Estado de S. Paulo, de 1932, reforça isso: “Às 21:50 horas – Grupo Regional: 1) Choro de bandolin pelo Garoto ac. grupo”. O mesmo poderia ser aplicado a qualquer instrumento solista: “choro de clarinete, choro de flauta…”.
É claro que não passa despercebida a lembrança do choro como o gesto emotivo, o desatar lamentoso, tal como a experiência mais primeva do ser humano sob as luzes desse mundo. Mário de Andrade até se pega achando curioso que povos da Guiné portuguesa usam a palavra para designar as cerimônias que precedem à morte, sempre acompanhadas de cantos e música. Pensando o choro dessa maneira, o jeito de tocar é o eixo de sentido.
É o que José Ramos Tinhorão destaca, defendendo a tese de que as cordas graves do violão seriam responsáveis pelo tom plangente que marcaria as músicas alcunhadas com o termo “choro” ainda no século 19. Tese parecida com a de Henrique Cazes, com a diferença de que, para o cavaquinista e autor do livro Choro: do Quintal ao Municipal, era a linha melódica, ou seja, geralmente os instrumentos que solavam e não os baixos do violão, que executavam fraseados chorosos.
Aliás, Cazes também cita outras hipóteses levantadas por nomes como Ary Vasconcelos, para quem o termo viria dos choromeleiros, corporação de músicos advindos do período colonial que tocavam, entre outros instrumentos, as charamelas (instrumentos de palheta). Assim como Câmara Cascudo, do qual Cazes destaca a hipótese de que o choro viria do termo “xolo”, sendo este os bailes que os escravizados realizavam nas fazendas. Aliás, algo que podemos derivar, ainda que indiretamente, da tese de Cascudo, é a fundamental presença negra na história e desenvolvimento do choro.
A pesquisadora Lúcia Campos reforça esse aspecto: “Com uma história de mais de 150 anos, o choro vem sendo construído, desde o século 19, da prática musical de músicos negros escravizados que passaram a tocar instrumentos e repertórios europeus e inventaram, a partir de suas musicalidades, uma música nova”. Não é à toa que nomes tão importantes da história do choro são negros. Um dos pioneiros, Joaquim Callado, assim como seu professor de música, Henrique Alves de Mesquita, eram negros. Pixinguinha, gênio estratosférico, também. Anacleto de Medeiros, Patápio Silva e tantos outros, da formação do choro aos dias atuais, atestam os compassos desse legado. Ao falar sobre como anfitriões e músicos convidados para os bailes domésticos pertenciam à mesma camada social, Tinhorão diz em seu livro História social da música popular brasileira: “Essa igualdade de condições econômicas, em uma camada em que os mestiçamento aparecia em larga escala, explica também o fato de não existir qualquer preconceito de cor entre os chorões”.
Por isso, o dossiê elaborado para o Iphan realça que a tessitura do choro é uma rede de histórias cruzadas, transatlânticas, de musicalidades entrelaçadas, a circular pelo Brasil e pelo mundo. E no meio desses fios ressoa uma explicação abrangente para esses fragmentos que compõem suas partes ao longo da história: “A pesquisa sobre essa forma de expressão revelou que o termo ‘choro’ é aquele empregado pelos próprios detentores e, portanto, o que melhor traduz, na perspectiva desses, o conjunto de contornos rítmicos, estilísticos, instrumentais e simbólicos, assim como o conjunto de práticas e relações sociais que compõem a singularidade desse bem cultural. De todo modo, o termo ‘choro’ é não apenas usual mas, principalmente, confortável para abrigar seus múltiplos componentes, decorrentes de gêneros e/ou linguagens musicais diversas”.
Quer dizer, o conjunto de práticas e a rede de sociabilidade que o engendra, incluindo ouvintes, instrumentistas, gravações, instrumentos, rádios, rodas, bailes, praças, salas de aula ou de concerto, formam uma prática cultural complexa e inclusiva. O reconhecimento do choro como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil ajuda a testemunhar o que o músico Toninho Carrasqueira nos lembra, ao evocar citação do dramaturgo Plinio Marcos: “Um povo que não ama e não preserva suas formas de expressão mais autênticas jamais será um povo livre”.
Fonte Jornal da USP – texto de Gustavo Xavier