Considerado um dos maiores contistas brasileiros, Dalton Trevisan construiu uma obra marcada pela precisão estilística e pela crueza com que retrata a vida urbana, especialmente em sua Curitiba natal, consolidando-se como um mestre do conto e uma voz singular na literatura contemporânea.
Quem é Dalton Trevisan?
Dalton Trevisan, um dos mais ilustres contistas brasileiros, nasceu em Curitiba, Paraná, no ano de 1925. Sua carreira literária é marcada por uma combinação harmoniosa de talento e dedicação ao ofício da escrita. Formado em Direito pela Universidade Federal do Paraná, Trevisan inicialmente se envolveu na prática jurídica, mas foi o chamado das letras que realmente definiu sua trajetória profissional.
Desde jovem, Trevisan demonstrou um profundo interesse pela literatura, o que o levou a publicar seus primeiros contos nos anos 1940. Aos poucos, ele foi consolidando uma reputação como mestre do conto, particularmente pelo seu estilo conciso e incisivo. Suas narrativas, muitas vezes ambientadas em Curitiba, exploram temas universais por meio de personagens multifacetados e situações cotidianas, trazendo à tona a complexidade das relações humanas em cenários urbanos.
O reconhecimento pelo seu trabalho não tardou a chegar. Ao longo de sua extensa carreira, Dalton Trevisan recebeu diversos prêmios literários de grande prestígio. Dentre eles, destaca-se o Prêmio Camões, recebido em 2012, uma das maiores honrarias concedidas a escritores de língua portuguesa. Outros prêmios importantes incluem o Prêmio Jabuti e o Prêmio Machado de Assis, que reafirmam seu legado na literatura brasileira e internacional.
A figura de Trevisan é frequentemente envolta em um ar de mistério, devido à sua aversão à vida pública e à fama. Este traço recluso só alimenta a aura enigmática que cerca sua obra, tornando-o um autor ainda mais fascinante para os leitores e críticos literários. Diante desse contexto, faz-se indispensável explorar as nuances e particularidades de sua vasta produção literária para compreender a profundidade do impacto de Dalton Trevisan na cultura brasileira.
Chove Chuva
A fumaça da chuva sobe pela chaminé das casas e se espalha sobre a cidade. Um fio de silêncio cai de cada gota. As gatas dengosas se viram de costas para dormir. Chove chuvinha, um lado da palmeira nunca se molha.
A casa das formigas não tem porta, e quando chove, não se afogam? Piam milhares de pardais entre as folhas do chorão. Não existe melhor conchego que um barzinho. Nada como a meia grossa de lã. Apaixonadas ou não, mocinhas espirram na fila do ônibus.
Neste instante há no mínimo três mil pessoas infelizes com o sapato furado. Basta que não chova eu me chamo Felipe, o Belo. Como pisar na lama, garotas da várzea, sem sujar as sapatilhas? Orelhas de piás são puxadas por brincarem na chuva. Os mascates que vendem maçã na rua, em desespero comem as maçãs?
Não estivesse chovendo eu teria sete filhos.
Guardas de trânsito abrem os braços na esquina e apitam: por que choves, Senhor? Chove que chuva, apaga o meu recado de amor no muro.
Mães pensam nos filhos tão longe, uns dedos trêmulos na vidraça: dona mãe, me deixa entrar. Em cada lata vazia repicam os sinos da chuva.
As mãos no bolso não esquentam. Alguns viúvos choram na fila, esse ônibus nunca vem. Ora, gotas de chuva, pensam os vizinhos. Todos querem esse guarda- -chuva esquecido num dia de sol, quando havia sol.
Os rabanetes no canteiro pulam as cabecinhas de fora.
Os armários das velhas casas estalam. Antigos baús são abertos, dia ruim para as traças. Há medo de vampiro na cidade.
Asinhas encharcadas, filhotes de pardais caem das árvores e se afogam nas poças.
As vovozinhas choram de frio na beira do fogão de lenha. Cães arranham a porta, licença para entrar. A sopa de caldo de feijão, epa! te queimou a língua.
Mesmo com chuva, há pares de namorados à sombra das árvores. Nem a chuva tira uma solteirona da janela.
Chapinhando as poças investe uma trinca de gordalhufas – pra cá pra lá, bundalhões hotentotes tremelicantes!
Senhor, tão bom se não chovesse. Ah, não chovesse, eu usaria barbicha. Não tivesse chovido eu casava com a Lia e não a Raquel.
Pra onde fogem os sorveteiros quando chove? Se chove, mais difícil enfrentar o vento sul sem perder o chapéu. Homens chegam em casa esfregam o pé no capacho e sentam para comer, dizendo: chuva desgracida.
Uma rosa no teu jardim abre as mil pálpebras do único olho.
O vento despenteia a cabeleira da chuva sobre os telhados.
Mesmo quando para a chuva, as árvores continuam chovendo.
A chuva lava o rosto dos teus mortos queridos.
Namorada
Depois que vê a garota ele corre se olhar no espelho: não pode negar, meio feio? quase feio? Numa palavra, feio. Dia seguinte desiste do bigode ralo. Quem sabe costeleta ou cavanhaque?
A menina o enfeitiça. Possuído, sim. Febrícula, sonho delirante, falta de ar, sede mas não de água.
Ela surge enrolada no garfo do suculento espaguete à bolonhesa. De sainha xadrez na primeira tarde, ó deliciosa bolacha Maria com geleia de uva. Formigas de fogo mordem sob a camisa quando ela vem na rua, brincando com o arco-íris na ponta dos dedos.
Consegue afinal apertar-lhe a mãozinha na luva de crochê, ri (descuidoso de ser feio) dentro de seus olhos glaucos. Discutem o narizinho, quem sabe arrebitado, segundo ela. E para ele, nada mais bonito que tal narizinho.
Meio do sono acorda, olho arregalado no escuro. A sua imagem o percorre, impetuoso vento por uma casa de portas abertas. Ninguém por perto, fala sozinho. A mãe o acha mais magro. Quem dera ser o terceiro motociclista do Globo da Morte.
Em guarda no portão, as mãos suadas, fumando. Ela aparece: um caramanchão florido de glicínia azul. Olhinho esquivo que fixa e foge. O sorriso (uma virgem fatal?) na pequena boca fresca.
Um dentinho ectópico no lado esquerdo, onde a palavra tiau esbarra quando sai. Ah, se ela deixar, passa o resto da vida adorando esse dentinho.
Espera outras vezes, fumando aflito, um cigarro aceso no outro. Ele mesmo um cigarro em chamas. A mocinha não quer lhe dar a mão. Como pode, uma santinha disfarçada na terra? Depois, deu.
Brava, ainda mais linda. Toda rosa, o lenço no pescoço, gatinha na janela depois do banho. A curva altaneira da testa, os cachos loiros arrepiados ao vento.
Ai, não, uma pérola na orelha. A pérola da orelha. Uma divina orelhinha esquerda, sabe o que é?
A voz meio rouca: Adivinhe o que eu tenho na mão? “Bem, pode ser tanta coisa.” Bala de mel, seu bobo. Pra você que não merece.
Já esquecido de timidez e feiura: “Sabe o que eu mais quero? É embalar você no colo.”
Pronto, ofendida, lhe negaceou o rosto.
De mal, até amanhã. Amanhã nosso herói vai cultivar uma barbicha.
O anjo
É um anjo, não há dúvida: apalpo, um tantinho gordo e cheiro, um pouco suado. Tem uns apóstolos-suspeitos, que inventam cada milagre! Um anjo, para falar a verdade, decaído, sujo, asa esquerda rasgada. Ao que se soube, dera um salto duplo (tentativa sacrílega de suicídio?) do terceiro vitral na igreja do Bom Jesus.
Feliz da vida, agora se diverte atirando batatinha frita na cabeça das damas da noite que às três da matina tomam sopa de cebola no Bar do Luís. Saúda pelo nome quem chega, sabe os segredos íntimos de todo mundo, cafifas, bofes e coronéis.
De repente a confusão: acusa um guarda-noturno de ter-lhe surrupiado o relógio de pulso (anjo, é sabido, odeia relógio). O guarda exige sua carteira de identidade, ele declara a condição de anjo — epa! leva um murro no olho.
O anjo numa cuspidela muda-o em botelha de rum da Jamaica, que bebemos todos, o anjo a piscar o olhinho roxo.
Senta uma dama alegre no colo e quer por força um ósculo (linguagem de anjo, ósculo!). Ela se nega, a boca é para beijar o filhinho. O anjo a arrasta pelos cabelos para baixo da mesa onde, entre ossos de frango e espuma de cerveja, dorme por sete dias (na versão de-jornais sensacionalistas).
Invocado, o anjo estranha a costeleta do leiteiro que chega manhã cedinho. Xinga-o de quanto nome feio, o leiteiro saca uma navalha, epa! risca em cruz o nariz do anjo. Esse não pode ver sangue e cai durinho de costas.
Pronto levanta, sacode o pó da asa em frangalhos, cadê o leiteiro? Se escafedeu, longe na carrocinha a galope. Tempo de afastar a atenção geral. Pudera, um anjo baderneiro!
Estala os dedos: encarna as moscas sobre a mesa em bombons de licor, que oferece às musas dos inferninhos. E os garçons em aves do paraíso que se penduram nos globos de luz.
Nessa hora, para ver o anjo, há barricadas nas portas e feros combates na cozinha.
O fim do anjo é triste: surge do meio do nada o maestro Remo de Pérsis e, abraçados, rompem em dó de peito a protofonia do Guarani.
Fatal: antes que puxe do braço uma terceira asa de reserva… Ai, não, linchado pela multidão em fúria. Aos berros de Morte ao tarado!
Mortinho, ninguém mais duvida. É anjo de verdade, na roupinha nova de marinheiro.
Ainda não vi outro anjo.
Roma
De Roma eu lembro da sede e dos degraus na rua. Inútil falar de qualquer monumento. Só da sede que me resseca a língua, andando nas ruas com escadas.
Soube pela primeira vez do sol em Roma ao ver as pessoas em fuga rente às fachadas brancas. Nas ruas todos seguem de cabeça baixa no lado da sombra. Atravessar uma praça é salto mortal de olho fechado na piscina ofuscante de luz.
Pela manhã ao erguer a cabeça do travesseiro você deixa a tua face molhada no lenço de Verônica.
Posso lavar o rosto com o próprio suor do rosto. Um fósforo aceso não apaga, queima até o fim.
Do vento em junho aqui não há notícia. Esses nichos nas fachadas, com a imagem de santos em santos louça, as únicas manhas negras nos paredões de luz.
Na próxima esquina eu mergulho a cabeça debaixo da fonte. Na seguinte, morrendo de sede, bebo na concha da mão a água cuspida por feias carrancas de pedra.
Os museus são corredores frescos, por onde passeio com sono e sede. Lá fora, as ruínas no meio da cidade — da história antiga ou da última guerra?
É a estação do sol, do prato fundo de macarrão com garfo e colher, do vinho e, muito mais, da água. Ao refrigério das fontes luminosas me acolho para sentir no rosto os pingos do repuxo.
Paisagem menos de palácio, museu, estátua que das poderosas romanas. Nutrientes fatias de polenta na chapa. Nalgas fornidas, a pé ou de vespa, os longos cabelos esvoaçantes ao vento, num bando de anjos barulhentos.
Suas prendas têm mais cores que as madonas dos museus. Elas, sim, as próprias madonas vivas.
A carne, o osso — ah, esses braços nus roubados da Vitória de Samotrácia!
Como entender a estátua se não viu a moça, vera loba romana? Ode a uma urna de água fresca do Tibre na epifania do amor.
Ó jarra de vinho generoso para matar a tua sede!
Contos disponíveis em Biblioteca Pública do Paraná
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