Ferreira Gullar, um dos maiores nomes da literatura brasileira, nos presenteou com uma obra poética vasta e profundamente impactante. Sua poesia transcende o simples jogo de palavras, tocando nas profundezas da alma humana e nas complexidades sociais do Brasil. Neste post, selecionamos sete das melhores poesias de Ferreira Gullar, cada um acompanhado de uma breve análise que explora suas nuances e significados.
1. Poema Sujo
Considerado a obra-prima de Gullar, “Poema Sujo” faz parte desta lisra de melhores poesias de Ferreira Gullar porque é um grito de desespero e resistência. Escrito durante seu exílio em Buenos Aires, o poema reflete a angústia do poeta diante da repressão política no Brasil e sua saudade da terra natal. A linguagem crua e visceral do poema traduz o caos e a desesperança daquele período, ao mesmo tempo em que celebra a vida em sua forma mais primitiva. Confira um trecho abaixo:
O homem está na cidade
como uma coisa está em outra
e a cidade está no homem
que está em outra cidade
mas variados são os modos
como uma coisa
está em outra coisa:
o homem, por exemplo, não está na cidade
como uma árvore está
em qualquer outra
nem como uma árvore
está em qualquer uma de suas folhas
(mesmo rolando longe dela)
O homem não está na cidade
como uma árvore está num livro
quando um vento ali a folheia
a cidade está no homem
mas não da mesma maneira
que um pássaro está numa árvore
não da mesma maneira que um pássaro
(a imagem dele)
está/va na água
e nem da mesma maneira
que o susto do pássaro
está no pássaro que eu escrevo
a cidade está no homem
quase como a árvore voa
no pássaro que a deixa
cada coisa está em outra
de sua própria maneira
e de maneira distinta
de como está em si mesma
a cidade não está no homem
do mesmo modo que em suas
quitandas praças e ruas
2. Traduzir-se
“Traduzir-se” é uma reflexão sobre a incomunicabilidade e a busca incessante por expressar o indizível. Gullar nos leva a questionar a eficácia da linguagem e a capacidade das palavras de capturar a essência da experiência humana. É um poema que fala sobre os limites da tradução da vida em palavras, algo que, para Gullar, sempre será imperfeito, mas necessário.
“Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.
Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.
Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.
Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.
Traduzir uma parte
na outra parte
– que é uma questão
de vida ou morte –
será arte?”
3. Cantiga para não morrer
“Cantiga para não morrer” é uma ode à resistência e à esperança. Escrito durante a ditadura militar, o poema exalta o poder da palavra e da memória como formas de manter viva a luta por liberdade e justiça. A simplicidade do verso esconde a profundidade do sentimento, tocando em questões universais como a luta pela dignidade humana.
Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.
4. Madrugada
O poema “Madrugada”, de Ferreira Gullar, é uma reflexão profunda sobre a condição do indivíduo em meio às tensões sociais e políticas. A imagem do poeta isolado “no fundo de seu quarto” e “no fundo de seu corpo clandestino” sugere um estado de reclusão e clandestinidade, possivelmente evocando o contexto da repressão e da censura durante a ditadura militar brasileira.
Do fundo de meu quarto, do fundo
de meu corpo
clandestino
ouço (não vejo) ouço
crescer no osso e no músculo da noite
a noite
a noite ocidental obscenamente acesa
sobre meu país dividido em classes
5. Os mortos
O poema “Os mortos vêem o mundo” de Ferreira Gullar aborda de maneira delicada e reflexiva a relação entre os vivos e os mortos, explorando a ideia de continuidade e a forma como as lembranças dos que partiram se entrelaçam com a vida daqueles que ainda estão aqui.
Os mortos vêem o mundo
pelos olhos dos vivos
eventualmente ouvem,
com nossos ouvidos,
certas sinfonias
algum bater de portas,
ventanias
Ausentes
de corpo e alma
misturam o seu ao nosso riso
se de fato
quando vivos
acharam a mesma graça.
6. Não há Vagas
O poema “Não há Vagas”, de Ferreira Gullar, expõe a incapacidade da poesia de abarcar as urgências e necessidades materiais do cotidiano. O poeta enumera itens essenciais como o feijão, o arroz, o gás, e as condições precárias de trabalhadores, afirmando que tudo isso “não cabe no poema”. Gullar critica a alienação da arte frente às questões sociais, mostrando como a poesia muitas vezes se descola da realidade concreta, tornando-se um espaço inacessível para as dores e dificuldades do povo. O poema enfatiza que “não há vagas” para as demandas reais no espaço da arte, que acaba se tornando um refúgio estéril, onde “só cabe no poema o homem sem estômago, a mulher de nuvens, a fruta sem preço”. A última linha, “O poema, senhores, não fede nem cheira”, reforça a ideia de que a poesia, quando desconectada da vida real, perde sua relevância, tornando-se insípida e irrelevante. Gullar, assim, denuncia a indiferença social e a falta de engajamento da arte em um contexto de injustiças e desigualdade. Faz parte do livro “Dentro da noite veloz”.
O preço do feijão
não cabe no poema.
O preço do arroz
não cabe no poema.
Não cabem
no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila
seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
— porque o poema,
senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira
Aprendizagem
Neste poema, Ferreira Gullar explora a dualidade entre alegria e sofrimento, apresentando-os como experiências complementares e inevitáveis na vida. O poeta inicia com um convite: “que te abriste à alegria, abre-te agora ao sofrimento”, sugerindo que, assim como a alegria foi plenamente vivida, o sofrimento também deve ser aceito e enfrentado. O sofrimento é visto como um “fruto” da alegria, seu “avesso ardente”, indicando que as emoções opostas estão interligadas e se originam uma da outra.
A profundidade com que o sujeito lírico se entregou à alegria é agora demandada para a dor, sem “mentiras nem desculpas”. Gullar propõe que o sofrimento, quando vivido sem disfarces, tem o poder de vaporizar “toda ilusão”, purificando o indivíduo e revelando a verdade essencial da existência.
O poema finaliza com a reflexão de que “a vida só consome o que a alimenta”, sugerindo que tanto a alegria quanto o sofrimento são necessários para o crescimento e a continuidade da vida. Gullar apresenta o sofrimento não como algo a ser evitado, mas como uma experiência vital para a compreensão e aceitação da realidade.
Do mesmo modo
que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.
Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor
se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão
que a vida só consome
o que a alimenta.
Gostou das melhores poesias de Ferreira Gullar? Veja os melhores livros de Ferreira Gullar para ler urgente: conheça aqui
Conclusão
As melhores poesias de Ferreira Gullar são marcadas por uma profunda humanidade e um compromisso inabalável com a justiça social. Cada um desses sete poemas exemplifica a habilidade do poeta de capturar a complexidade da experiência humana e de desafiar as convenções através de uma linguagem poderosa e evocativa. Ler as melhores poesias de Ferreira Gullar é se permitir ser tocado pela beleza e pela dor, pela esperança e pela resistência. É, acima de tudo, um convite à reflexão e ao despertar.