Martin Amis morreu. O ponto final de sua vida também é a conclusão de suas obras completas. Podemos olhar para o conjunto amplo e agora definitivo de seus trabalhos e avaliá-lo.

    Mas avaliar os trabalhos de Martin Amis não é o que pretendo fazer aqui. Afinal, não li todos os seus livros e não pretendo fazê-lo tão cedo. No entanto, a notícia da morte do escritor inglês me fez forçar a memória para ver o que ainda havia em mim de seus livros.

    Martin Amis sempre me pareceu um ótimo escritor. Sempre que li alguma coisa dele, nunca fiquei entediado ou torcendo para o livro magicamente acabar rápido. Revolvendo minha memória, percebo, não sem certa tristeza, que pouco me lembro de seus livros. Do seu “Grana”, lembro do aviso inicial em relação ao protagonista, algo assim: “A não ser que eu diga o contrário, ele está sempre fumando”. Do “A viúva grávida”, lembro de cenas do verão europeu vividos pelos personagens ainda jovens e das reflexões sobre gerações e valores em conflito. Do “Trem noturno”, lembro que a protagonista é uma policial feminina. Do “A informação”, lembro de uma frase, mais ou menos assim: “Case-se com a pessoa que for a sua obsessão sexual”. O fato é que pouco me lembro dos enredos desses livros. O que ficou foram alguns trechos, algumas passagens ou mesmo apenas algumas palavras.

    E não exagero. Lembro, por exemplo, das sonoras palavras com que Amis qualifica o título da autobiografia de Gore Vidal “Palimpsest”: arty (artístico) e finicky (meticuloso). A repetição dos sons dos “is” dá uma certa estridência aos adjetivos. Lembro de seus ensaios sobre sua visita à viúva de Nabokov e sua ida à ilha de Santa Lucia. Lembro de alguns de seus ensaios literários, cujo estilo era sempre muito vigoroso, como se quisesse agarrar a unhas o livro ou autor comentado, puxá-lo para mais perto e, dependendo do seu humor, abraçá-lo ou socá-lo no rosto.

    Uma significação

    O que isso significa, afinal? Talvez que eu seja um leitor distraído, ou que minha memória não seja lá essas coisas. Talvez que lembrar enredos não seja meu forte. Talvez que, entre mim e essas leituras, já há uma boa distância. Talvez que de tudo fique um pouco, muito pouco…

    Ou talvez não signifique nada que não o fluxo normal das coisas. Leituras vêm, leituras vão, memórias vêm, memórias vão. Saber que se esqueceu também é uma forma de lembrar. Não deixa de ser frustrante, de toda forma, concluir que de tantas horas de leitura restou apenas um punhado de palavras.

    Chegar a essa triste conclusão não diz toda a verdade. Pois a leitura não é apenas um cérebro diante de um bloco sólido de palavras, que vai sendo refeito dentro do cérebro à medida que a leitura avança. Ler não é apenas transferir palavras da página para a cabeça. Há uma dimensão invisível que transcende palavras e cérebros. Um impacto, que se sente e perdura. Aloja-se numa memória mais física do que mental. Às vezes pega na espinha ou no início da nuca. Por vezes, sente-se nas tripas ou raspando os ossos da bacia. Àqueles a quem podemos chamar de grandes escritores possuem isso em comum: suas palavras nos impactam. Por vezes, só o impacto perdura em nós. Mas é ele que nos garante que retornar àquelas palavras daquele escritor não é viagem vã. E a outras. E a novas.                

    Martin Amis é um grande escritor.

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