Neste artigo você encontrará uma breve biografia sobre Vincent Van Gogh, a análise sobre o conto “A orelha de Van Gogh”, escritor por Moacyr Scliar, e em seguida poderá ler na íntegra o conto. Desfrute!
Quem foi Vincent Van Gogh?
Vincent van Gogh (1853-1890) foi um pintor pós-impressionista holandês, conhecido por suas obras marcantes e uso expressivo de cores. Apesar de sua vida conturbada e saúde mental frágil, produziu mais de 800 telas, incluindo “Noite Estrelada” e “Os Girassóis”. Morreu aos 37 anos, sem reconhecimento em vida, mas tornou-se um dos artistas mais influentes da história.
Análise do conto “A orelha de Van Gogh
No conto “A Orelha de Van Gogh”, Moacyr Scliar usa o episódio emblemático da vida de Van Gogh, em que o pintor corta sua orelha, como pano de fundo para criar uma narrativa cômica e cheia de absurdos. Contudo, é importante notar que algumas informações do pai, o protagonista, são distorcidas ou mal interpretadas, o que revela a maneira como o autor brinca com a ideia da memória e da percepção equivocada da realidade.
O primeiro equívoco está no uso da orelha como uma suposta solução financeira. O pai, que se encontra em dificuldades com um credor implacável, acredita que pode usar a paixão do homem por Van Gogh para perdoar sua dívida, oferecendo a “orelha mumificada” do artista como pagamento. Essa ideia absurda é claramente uma paródia, mostrando a ingenuidade do protagonista e o modo distorcido como ele enxerga o valor das coisas.
Outro detalhe importante é que o próprio pai, apesar de ter estudado sobre Van Gogh, não se lembra se o pintor cortou a orelha direita ou esquerda, o que indica uma falta de profundidade no conhecimento que ele alega ter. Este esquecimento é simbólico: reflete a confusão e a superficialidade com que as pessoas às vezes tratam a história, misturando fatos e mitos. No caso de Van Gogh, a orelha cortada tornou-se um símbolo tão poderoso que, no conto, sua autenticidade sequer é questionada, e o próprio conceito de verdade histórica é ironizado.
Em terceiro lugar, o que foi feito com a orelha cortada também é fruto de confusões, uma vez que uns dizem que a orelha foi entregue para a sua amada, já no livro “Cartas a Theo“, a informação que temos é que Van Gogh entregou sua orelha a um policial:
“No dia 25 de dezembro, Vincent tem um ataque de loucura e faz com que exploda a crise que se armava entre ele e seu amigo Gauguin. Van Gogh corta com uma navalha a própria orelha e entrega a um policial (segundo Gauguin).” (p. 289)
O absurdo e o cômico
O diálogo entre o pai e o filho também evidencia a forma como Scliar explora o absurdo e o cômico. O filho, ainda na infância, percebe que há algo profundamente errado na atitude do pai, mas se vê preso no “labirinto” dessa história confusa. A dúvida sobre qual orelha foi cortada se transforma, no final, em um símbolo da perda da inocência do menino, que aos poucos começa a perceber as incoerências do mundo adulto.
A última frase, em que o filho admite estar perdido no “labirinto” das orelhas, é uma metáfora mais ampla: sugere que, ao entrar nesse universo de ilusões e equívocos, ele nunca mais sairá dele, uma vez que o mundo é cheio de incertezas, enganos e interpretações distorcidas. Essa perda de orientação remete à própria condição humana, onde verdades absolutas são raras, e muitas vezes nos encontramos presos em labirintos de confusão e dúvida.
Moacyr Scliar, com seu humor refinado e crítica sutil, usa “A Orelha de Van Gogh” para questionar o valor que atribuímos a símbolos e histórias, ao mesmo tempo que expõe a fragilidade das certezas humanas. A história funciona como uma alegoria da busca por saídas fáceis para problemas complexos e do modo como, muitas vezes, nos perdemos em detalhes irrelevantes, sem jamais compreender a essência da questão.
Leia abaixo o conto completo
A orelha de Van Gogh
Estávamos, como de costume, à beira da ruína. Meu pai, dono de um pequeno armazém, devia a um de seus fornecedores importante quantia. E não tinha como pagar.
Mas, se lhe faltava dinheiro, sobrava-lhe imaginação… Era um homem culto, inteligente, além de alegre. Não concluíra os estudos; o destino o confinara no modesto estabelecimento de secos e molhados, onde ele, entre paios e linguiças, resistia bravamente aos embates da existência. Os fregueses gostavam deles, entre outras razões porque vendia fiado e não cobrava nunca. Com os fornecedores, porém, a situação era diferente. Esses enérgicos senhores queriam seu dinheiro. O homem a quem meu pai devia, no momento, era conhecido como um credor particularmente implacável.
Outro se desesperaria. Outro pensaria em fugir, em se suicidar até. Não meu pai. Otimista como sempre, estava certo de que daria um jeito. Esse homem deve ter seu ponto fraco, dizia, e por aí o pegamos. Perguntando daqui e dali, descobriu algo promissor. O credor, que na aparência era um homem rude e insensível, tinha uma paixão secreta por van Gogh. Sua casa estava cheia de reproduções das obras do grande pintor. E tinha assistido pelo menos uma meia dúzia de vezes o filme de Kirk Douglas sobre a trágica vida do artista.
Meu pai retirou na biblioteca um livro sobre van Gogh e passou o fim de semana mergulhado na leitura. Ao cair da tarde de domingo, a porta de seu quarto se abriu e ele surgiu, triunfante:
– Achei!
Levou-me para um canto – eu, aos doze anos, era seu confidente e cúmplice – e sussurrou, os olhos brilhando:
– A orelha de van Gogh. A orelha nos salvará.
O que é que vocês estão cochichando aí, perguntou minha mãe, que tinha escassa tolerância para com o que chamava de maluquices do marido. Nada, nada, respondeu meu pai, e para mim, baixinho, depois te explico.
Depois me explicou. O caso era que o van Gogh, num acesso de loucura, cortara a orelha e a enviara à sua amada. A partir disso meu pai tinha elaborado um plano: procuraria o credor e diria que recebera como herança de seu bisavô, a orelha mumificada do pintor. Ofereceria tal relíquia em troca do perdão da dívida e de um crédito adicional.
– Que dizes?
Minha mãe tinha razão: ele vivia em um outro mundo, um mundo de ilusões. Contudo, o fato de a ideia ser absurda não me parecia o maior problema; afinal, a nossa situação era tão difícil que qualquer coisa deveria ser tentada. A questão, contudo, era outra:
– E a orelha?
– A orelha? – olhou-me espantado, como se aquilo não lhe tivesse ocorrido. Sim, eu disse, a orelha do van Gogh, onde é que se arranja essa coisa. Ah, ele disse, quanto a isso não há problema, a gente consegue uma no necrotério. O servente é meu amigo, faz tudo por mim.
No dia seguinte, saiu cedo. Voltou ao meio-dia, radiante, trazendo consigo um embrulho que desenrolou cuidadosamente. Era um frasco com formol, contendo uma coisa escura, de formato indefinido. A orelha de van Gogh, anunciou, triunfante.
E quem diria que não era? Mas, por via das dúvidas, ele colocou no vidro um rótulo: Van Gogh – orelha.
À tarde, fomos à casa do credor. Esperei fora, enquanto meu pai entrava. Cinco minutos depois voltou, desconcertado, furioso mesmo: o homem não apenas recusara a proposta, como arrebatara o frasco de meu pai e o jogara pela janela.
– Falta de respeito!
Tive de concordar, embora tal desfecho me parecesse até certo ponto inevitável. Fomos caminhando pela rua tranquila, meu pai resmungando sempre: falta de respeito falta de respeito. De repente parou, olhou-me fixo:
– Era a direita ou a esquerda?
– O quê? – perguntei, sem entender.
– A orelha que van Gogh cortou. Era a direita ou a esquerda?
– Não sei – eu disse, já irritado com aquela história. – Foi você quem leu o livro. Você é quem deve saber.
– Mas não sei – disse ele desconsolado. – Confesso que não sei.
Ficamos um instante em silêncio. Uma dúvida me assaltou naquele momento, uma dúvida que eu não ousava formular, porque sabia que a resposta poderia ser o fim da minha infância. Mas:
– E a do vidro? – perguntei. – Era a direita ou a esquerda?
Mirou-me, aparvalhado.
– Sabe que não sei? – murmurou numa voz fraca, rouca. – Não sei.
E prosseguimos, rumo à nossa casa. Se a gente olhar bem uma orelha – qualquer orelha, seja ela de van Gogh ou não – verá que seu desenho se assemelha ao de um labirinto. Neste labirinto eu estava perdido. E nunca mais sairia dele.
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Moacyr Scliar. In: Pipocas / Moacyr Scliar, Rubem Fonseca, Ana Miranda. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 13-16. Coleção Literatura em minha casa; v.2 Crônica e conto. Fonte: Supertextos