Para além das palavras, a declaração de Alvim é composta também por um tom semelhante ao utilizado pelo ministro da propaganda de Hitler (em termos de cadência da fala) e do fundo musical de Wagner, compositor alemão associado como símbolo nacional durante o regime nazista. Coincidência? Difícil acreditar.


    O livro O que é fascismo? E outros ensaios, lançado pela Companhia das Letras em 2017, traz um compilado bem interessante sobre textos escritos por George Orwell, publicados na imprensa britânica entre 1938 e 1948. Em um dos ensaios, intitulado Histórias e mentiras, o autor se depara com uma reflexão bem pertinente: como o discurso permeia conceitos, tal como o de história, e de construção das noções que tomamos tão banalmente como verdade e mentira. Daí o título do texto.

    Ao discorrer sobre as guerras e como suas narrativas são construídas na história, Orwell nos lembra que a história é sempre escrita pelos supostos vencedores. Nesse contexto, de acordo com o autor, o que é realmente assustador em relação aos regimes totalitários é que eles agridem o conceito de verdade objetiva: proclamam que controlam o passado tão bem quanto o futuro. Ou seja, não há nenhum compromisso com a concretude dos fatos, mas uma preocupação com a forma como fatos são construídos, muitas vezes omitidos, com o propósito da manutenção do poder por meio da manipulação do discurso. Assim, Orwell afirma, para quaisquer “finalidades práticas”, a mentira terá se tornado verdade.

    Disseminar mentiras: uma tática antiga e atual

    Essa tem sido uma tática muito conhecida e utilizada por governos em todo o mundo. É uma ferramenta útil e perigosa. No Brasil, obviamente, não é diferente. A manipulação do discurso sempre existiu e passa a ser o modus operandi de modo explícito: desde o uso de tecnologias para disseminar não-verdades em épocas eleitorais até a desconstrução sistêmica do regime democrático à qual presenciamos. Vivemos em um complexo paradoxo.

    Há um esvaziamento proposital dos conceitos: afirma-se a verdade ao reforçar mentiras; alega-se segurança ao armar a população; busca-se combater a violência ao propagar discurso de ódio. O que nos lembra muito a dissonância cognitiva do “duplipensar”, prática adotada pelo Grande Irmão para o controle absoluto do livre pensar, presente na distopia tão famosa, 1984, também escrita por George Orwell.

    Roberto Alvim e Joseph Goebbels: coincidência?

    Ainda no campo semântico da linguagem, dentre os muitos episódios ocorridos ultimamente, nos saltou aos olhos a citação literal de Roberto Alvim, então secretário nacional da cultura, a trechos de um texto de Joseph Goebbels, ministro da propaganda do regime nazista de Hitler, em um de seus pronunciamentos. Diante da onda de repúdio gerada pela ação, Alvim usou as redes sociais para se justificar, alegando que as semelhanças do discurso foram apenas uma “coincidência retórica”.

    A ação é gravíssima e, de tão absurda, parece até chacota. Em sua fala, Alvim usa os mesmos termos utilizados por Goebbels para se referir à arte do país, a qual deverá ser heroica e nacional, e termina com a paráfrase “ou então não será nada”. Uma escolha infeliz de termos? Pode até ser. No entanto, para Umberto Eco, entre a intenção do autor e o propósito do intérprete existe a intenção do texto, ou seja, o que de fato o texto nos apresenta.

    Para além das palavras, a declaração de Alvim é composta também por um tom semelhante ao utilizado pelo ministro da propaganda de Hitler (em termos de cadência da fala) e do fundo musical de Wagner, compositor alemão associado como símbolo nacional durante o regime nazista. Coincidência? Difícil acreditar.

    Um discurso não existe no vácuo

    Para se analisar um discurso, aprendemos que ele nunca existe em um vácuo. O contexto é um elemento chave para que possamos entender de onde esse texto vem e para onde ele pode ir. O pronunciamento de Alvim, oficializado por meio de um dos canais oficiais do governo, corrobora com o desmonte da cultura que vem ocorrendo no Brasil, representado pela censura, corte de verbas e esfacelamento de programas e órgãos como a Ancine. Se Orwell nos ensinou bem, não existem coincidências retóricas. A dúvida constante é: aonde isso vai parar? Cabe a nós não deixar que as mentiras se tornem verdades.

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