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Fluxo (homenagem pobrinha a James Joyce)

O que segue é uma homenagem a James Joyce. Estou relendo “Ulysses”. Eu bem que poderia escrever um texto mais quadradinho, mas pensei melhor: Joyce merece um formato diferente. O que vocês lerão é uma pálida tentativa de reproduzir uma técnica (“fluxo de consciência”) que marca profundamente o maravilhoso romance joyceano. Sim, pálida. Joyce é o mestre de todos nós. Soube como ninguém agarrar a vida. Sem mais, a homenagem:

Deu para dormir bem. Não acordado pelo apitinho do Caicai. Hoje o Caicai não apitou o jogo. O apitinho, ora, ora!, é o despertador de domingo. Joguinho mais arrastado. O pessoal brigando mais. Sem vontade de ver por muito tempo. Culpa deles. Café. Nome cheio de frescura na cápsula. “Livanto”, “Caramelito”. Pra quê? Pra enfiar a faca nos trouxas. Um cigarrinho. Tomara que o terrenão não vire prédio. Tomara que não vire nada. Cadê o gatinho que sempre anda lentinho? No telhado! Não tão lento assim. Malandrão.

Ler mais um pouco? Não seja pilantra. Tarefas, meu bom jovem! Depois a farra. Umas paginazinhas, pelo menos! Não! Não! Trabalho, trabalho! Vixe, danou-se. Preparar as provas ? Não, por último. Preparar as aulas? Pode ser. Como a Unicamp sabe fazer prova! O Enem é maroto! E essa visão do Naturalismo? Parece que não andamos. Estamos no final do século XIX. Esse Camões… Leitura dos sonetos: enciclopédia da vida. Aula de Amor. Aula de Amargura. Esse exercício, sim; esse outro, faço junto com eles. Pronto. Bingo.

Cigarro é uma desgraça. Custa fazer a próxima tarefa? Mas tem que pitar o maldito cigarrinho. Rapidinho, ô! Calma, jovem! Ih, a chuva derrubou a faixa da imobiliária. Senhor, senhor, aí não tem manga! É na outra árvore. Eita! Só uma sacolinha, senhora? Tá de brincadeira? Vai catar só três mangas? Chega, tonto! Trabalho, trabalho.

Não enrolar muito. Concentração, meu filho! Maldito dedo gordo. Tudo meio embaralhado. Que feio, professor, prova com erro de digitação! A Patricia não consegue ficar parada. Até que o aspirador é meio discreto. Patricia, é domingo. Durma, descanse, lagarteie, meu anjo! Não adianta falar. Teimosa. Capaz de tirar um sarro. Conheço a peça. Sobra pra mim. Fazer uma questão cabeçuda? Opa! Mas não é sacanagem.

Ufa! Até que foi rápido. Não pense muito. A coluna! Aproveite o embalo. Mas e o cigarrinho? Custa nada. Meu Deus, eu casei com a fada da arrumação! Xiu, meu, fique na sua! Não mexa com a fera. Você vai ser zoado. Fume em paz seu cigarrinho. Não arrume treta. Você sempre perde. Ela sempre tem razão. Como é legal o barulhinho do chinelinho! Pô, mas já cataram as mangas? Cadê o gato? Sem solzinho, né, pilantra? E esse monte de carro parado perto da guia? Festinha no clube? No domingo? Credo! Boa sorte.

Sem fome. Qualquer coisa serve. O que tiver tá bom. Sério. Eita, como você é burro! Ó a cara dela. Mexeu com a fera. Viu, não qualquer coisa. Você entende. O que você achar melhor. Ufa! Sem pressa, viu? Tava bom o ovo mexido, viu? Barriguinha cheia, hehehehe! Pois é. Vai na manha na manhã. Que tonto. Deixar a dama em paz. Voltar pro trabalho.

Claro que vai ser sobre o Joyce. Ele é o maior de todos. Você sempre diz isso. Cada gigante é o maior de todos. Moleque volúvel. Vai com calma. Sim, é o maior de todos. Pelo menos por enquanto. Depois vai ser quem? Putz, sei lá. Um passo por vez. Um ensaio fino? Não, não, não. Você não tem bala pra isso. O pessoal vai achar um porre. Baixe a sua bola. Um texto cheio de graçolas? Respeita o cara. Tem que ser muito bom pra fazer um treco desses. Bancar o inovador? Ora, ora, que interessante. Pode ser. E não é que é a melhor homenagem? Dar uma de Joyce. Meio inofensivo, vai! Ele bem que ia gostar. Baita de um maluco, isso sim.

Ai, que fominha! Agora bateu. Como que pode? Até minutos atrás, nada. Nem pense em levantar para pitar o cigarrinho. Já deu por hoje, caramba. E não esqueça: você falou que ia terminar a coluna rapidinho. Bocó, pra que ficar garganteando. Agora fique bem sentadinho na cadeira, bata o seu texto. O cheiro da comidinha! Baita sacanagem! Quem mandou casar com uma italianinha? Pelo menos não tem suco detox na geladeira.

Ligar a televisão. Ajuda a escrever. Pelo menos pra mim funciona. Tem gente que prefere o silêncio. Tudo no lugar certo. Meio que um ritual. Neto, aprenda a respeitar quem pensa diferente. Tá, tá. Tá, nada. Baita frescura. Qual o problema da televisão. Canal de esporte, claro. A Patricia não está perto.

Como endeusam esse Guardiola! Pra que fazer essa carinha de choro. Até beicinho, meu! Tenha dignidade. Calma, locutor! Vai chorar junto, meu? Caramba, que “momento histórico”? Ufa, comentarista, obrigado! Esfrie a empolgação do cara! Epa, lá vem a maldita cena do trofeuzinho. Quer apostar? Ó: a turma subindo as escadas para a tribuna. Viu? Todo mundo apertado na tribuna. Viu, viu? Agora vão começar a dançar. Ahá! Agora vem o troféu. Eita! Agora fingir três vezes que vão levantar o troféu. Pô! Chama o Guardiola, pra galera delirar. Dou-lhe uma, dou-lhe duas. Eeeeeee! Apareceu o Guardiola. Uau, narrador, chorando? Que vida você deve ter, hein? Neto, Neto, deixa o cara em paz. Desculpe, narrador. Solte a sua emoção. Abra a torneirinha. Seja feliz. “Seje”. Seu sacana, quase fundiu a cabeça daquele cara dizendo que o certo é “seje”. Que o certo é “perca de tempo”. Maldito sádico. Dessas coisas você lembra, né? Tá, gente, já deu. Encerra a transmissão e mostra outra coisa.

“Viu, o almoço está pronto”. Oba! Epa, calma! Primeiro terminar o texto. Depois você enfia o pé na jaca. “Você pode esperar só mais um tantinho? Estou terminando aqui.” “Claro, claro.” Nem imagina o tamanho da abobrinha que está saindo aqui. Não seja cruel. É homenagem, é homenagem! Você acha isso, Neto. Não banque o palhaço.

Esse celular tem que tremer desse jeito? Que assustador. Ué, deixa no mudo. Tá, espertão, como saber se alguém está ligando? Mas tem que ser esse barulho. Tem, tem. Volte pro computador. Não desista. Finalzinho, finalzinho.

Ufa, deu!

Patricia, Patricia, terminei! Vamos comer? E a fome? Tá com fominha? Eba. Desculpe, viu?

E começa a sinfonia dos talheres.

Por Nelson Fonseca Neto
Professor de Português e Colunista de jornal. Trabalhou na editora Cosac Naify. É casado com a Patricia. Acredita que os gatos são o símbolo da perfeição.



(texto publicado primeiramente no Jornal Cruzeiro do Sul)

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