No livro “De espaços abandonados”, Luisa Geisler mostra como é possível preencher um livro, uma vida e seus vazios olhando para as entrelinhas.
Você provavelmente já ouviu ou leu o nome Luisa Geisler por aí. Pelo menos nove em cada dez dessas listas sobre escritores prodígios que todo mundo deveria conhecer ou de melhores livros nacionais contemporâneos (dados cientificamente comprovados apenas pela minha cabeça) incluem, respectivamente, ela e seu livro Luzes de emergência se acenderão automaticamente. Nascida em Canoas (RS) em 1991, Luisa publicou quatro livros, ganhou duas vezes o Prêmio SESC de Literatura e, também por duas vezes, foi finalista do Jabuti. De espaços abandonados, seu mais novo romance, foi lançado em junho deste ano (2018), pela Editora Alfaguara.
O livro segue a busca de Maria Alice que, baseada em fotos de um blog aleatório que encontrou pela internet e certezas que só ela tem, parte para Dublin achando que lá poderia rever a mãe desaparecida. Mas, mais do que isso, o romance também é sobre as dificuldades de não saber o que se faz da vida, sobre ser imigrante e viver com a sensação de não pertencer. Ele mostra a solidão do morar longe e a do compartilhar uma casa com gente que, apesar das conversas cotidianas e independentemente do tempo que se passe junto, não se conhece muito bem.
“De espaços abandonados”: um livro experimental?
Separado em três partes, o livro se enquadra bem na definição “experimental” e funciona, como a autora já mencionou, como um mosaico narrativo de vozes. A história é fragmentada, construída através de cartas, pequenos bilhetes, fotografias, exercícios em um manual de escrita e fichas de personagem. O leitor aqui é agente: ele não assiste passivamente o desenrolar de uma narrativa, mas participa dela; ele constrói toda uma “verdade” baseada nas mais diversas formas de ver de pequenos acontecimentos a períodos inteiros, em perguntas e em espaços, sejam eles preenchidos ou não. O manual toma mais da metade do livro. Nele, encontramos os mais diversos desafios de escrita, já que são 366 questões a serem resolvidas. Boa parte delas possui respostas que podem ou não fazer sentido, que podem ou não nos contar algo da história “maior”, de Maria Alice, de sua mãe; outra parte é deixada em branco. Nesse grande jogo, a busca por respostas concretas deve ser deixada de lado; o livro não entrega nada pronto, muitas vezes o livro escreve por si.
A ideia de que uma história estava sempre presente, sempre transbordando e infiltrando outra história. Às vezes a história estava lá, na sua frente, quase sumindo. E você apenas a notaria com o tempo, com o incômodo que causar, se causar. Ou se puser atenção. Você até poderia descobrir a história, ver as manchas na parede, ver as gotas de água saindo para os lados. Você descobriria o lado de fora da história, a embalagem, as tentativas de cobrir com tinta. Porque fungos na parede se alimentam de nada, não é? Tinha algo assim: que se alimentam de concreto. Sete bilhões de pessoas passaram, aguentaram, adoraram e experimentaram esse dia de maneira diferente e única. Se combinássemos cada uma das horas experimentadas por cada ser humano, pela humanidade como um todo, no dia de hoje, e colocássemos uma ao lado da outra em vídeo, se gravássemos em áudio, se tirássemos fotos e as enfileirássemos, demoraríamos quase um milhão de anos para assistir a tudo. Afinal, uma hora pra cada indivíduo, e eram sete bilhões de indivíduos. A memória coletiva de todos nós, todos os indivíduos, durante um ano eram mais longa que nossa experiência toda como Homo Sapiens, talvez. A história linear perde espaço para a história em asteriscos, que se expande para as experiências de cada um. Você via a história sem saber por que ela estava ali. E testava seu temperamento. Desse exato jeito, você encontrava a própria história.
(p. 328)
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Lembro que, em algum momento em 2017, tive a oportunidade de ouvir Conceição Evaristo falando sobre sua obra e, enquanto respondia alguém da plateia, ela comentou – certamente de uma forma mais bonita e bem elaborada – que seus personagens vão se moldando e existindo sem esperar que ela lhes dê permissão. É mais ou menos isso o que acontece com De espaços abandonados. O livro existe, as personagens existem, as cartas, as respostas e as evidências existem. Eles brincam entre si; como as escadas de Hogwarts, eles trocam de lugar, modificam o caminho que estávamos segundo, eles bagunçam coisas que nós pensamos que sabíamos. O livro parece existir sem nos pedir permissão, mas, ao mesmo tempo, parece querer e precisar do leitor para que tudo aquilo faça sentido, para que uma história seja construída.
“O ‘como’ a história é narrada e a história em si estão muito ligados”, é o que diz a própria Luisa em um post no blog da editora. De espaços abandonados é sobre fugir – de um país, de uma vida, de um destino – e é sobre a busca. Ele também é sobre a escrita e sobre a leitura. A obra, que pode parecer cansativa em alguns momentos e até sem sentido quando questiona: “que qualidades você busca em um colega para dividir a casa?”, tem como resposta “todos os dias fazia esse relatório que ninguém lia”, mas é preciso olhar para além daquilo que se mostra pronto. Clarice dizia que toda palavra tem sua sombra; Luisa mostra como é possível preencher um livro, uma vida e seus vazios olhando para as entrelinhas.