A poeta brasileira Auta de Souza (1876 – 1901) faz parte do período literário denominado Romantismo. Mas em sua obra, há elementos que avançam em outras estéticas, como o Simbolismo e o misticismo. A autora nasceu em 1876, seus pais morreram muito jovens de tuberculose e ela foi criada por sua avó, que, embora analfabeta, lhe proporcionou estudos. Nascida em Recife, Auta de Souza começou a escrever desde cedo para diversos jornais e participou da sociedade intelectual de sua época.

Entretanto, muito se fala sobre o silenciamento na literatura e alguns críticos evidenciam que, no caso de Auta de Souza, não há presença da luta contra o racismo em sua obra. Por outro lado, há também aqueles que compreendem o cenário em que Auta de Souza viveu como algo muito mais complexo:

“Sem sombra de dúvidas o silenciamento da própria cor nos seus escritos e a imagem produzida sobre si foi um dos motivos mais preponderantes da obra de Auta ter alcançado tamanha aceitação na imprensa brasileira da época que ainda fechava portas para as mulheres e para os descendentes negros. Assim, sempre que falarmos em escrita
feminina no século XIX a obra de Auta vai ter grande importância, sobretudo por ela representar uma pequena parcela de mulheres negras que ficaram conhecidas pelo hábito da escrita e como todas elas, acreditamos que Auta também teve de romper barreiras até adquirir seu espaço.”

FARIAS, GENILSON DE AZEVEDO. Auta de Souza: superando barreiras de gênero e raça no espaço da literatura
feminina dos oitocentos. Acesse aqui

Auta de Souza morreu aos 25 anos de tuberculose. Em sua lápide, retido de seu poema “Ao pé do túmulo”, está escrito: “Longe da mágoa, enfim no céu repousa 
Quem sofreu muito e quem amou demais.”

O seu livro Horto, publicado pela primeira vez em 1900, possui as melhores poesias da autora. E a poesia, como bem sabemos, é cheia de entrelinhas, belezas peculiares que surgem onde não esperamos e também retratam o tempo, a vida e a memória. Confira abaixo, então, uma seleção de poesias de Auta de Souza.

Ao pé do túmulo (Auta de Souza)

Eis o descanso eterno, o doce abrigo
Das almas tristes e despedaçadas;
Eis o repouso, enfim; e o sono amigo
Já vem cerrar-me as pálpebras cansadas.

Amarguras da terra! eu me desligo
Para sempre de vós… Almas amadas
Que soluças por mim, eu vos bendigo,
Ó almas de minh’alma abençoadas.

Quando eu d’aqui me for, anjos da guarda,
Quando vier a morte que não tarda
Roubar-me a vida para nunca mais…

Em pranto escrevam sobre a minha lousa:
“Longe da mágoa, enfim, no céu repousa
Quem sofreu muito e quem amou demais”.

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A Eugênia (Auta de Souza)

Imagem santa que entrevejo em sonho,
Sempre, sempre a cantar,
Criatura inocente, anjo risonho,
Que me ensinaste a amar!

Meu doce amor! Calhandra maviosa
Que canta dentro em mim;
Minha esperança tímida e formosa,
Meu sonho de marfim!

Amaranto do Céu, flor encantada,
Mimoso colibri;
Minha açucena pálida e magoada,
Meu níveo bogari;

Gota de orvalho a tremular n’um lírio
Que mal começa a abrir;
Ó tu que apagas meu cruel martírio
E que me fazes rir;

Madressilva entreaberta, lira de ouro,
Celeste beija-flor;
Minha camélia, meu sorriso louro,
Amor de meu amor;

Guarda estes versos que só dizem mágoa
E tristezas sem fim…
Deixa-os no seio como a gota d’água
No cálix de um jasmim…

Clarisse (Auta de Souza)

“Não sei o que é tristeza,” ela me disse…
E a sua boca virginal sorria:
Ninho de estrelas, concha de ambrosia
Cheia de rosas que do Céu caísse!

E eu docemente murmurei: Clarisse,
Será possível que tu’alma fria
Ouvindo o choro da Melancolia
O ressábio do fel nunca sentisse?

Será possível que o teu seio, rosa,
Nunca embalasse a lágrima formosa?
Ah! não és rosa, pois não tens espinho!

E os olhos teus, dois templos de esperança,
Nunca viram sofrer uma criança,
Nunca viram morrer um passarinho.

Ao cair da noite (Auta de Souza)

Não sei que paz imensa
Envolve a Natureza,
N’ess’hora de tristeza,
De dor e de pesar.
Minh’alma, rindo, pensa
Que a sombra é um grande véu
Que a Virgem traz do Céu
Num raio de luar.

Eu junto as mãos, serena,
A murmurar contrita,
A saudação bendita
Do Anjo do Senhor;
Enquanto a lua plena
No azul, formosa e casta,
Um longo manto arrasta
De lúrido esplendor.

Minhas saudades todas
Se vão mudando em astros…
A mágoa vai de rastros
Morrer na escuridão…
As amarguras doidas
Fogem como um lamento
Longe do Pensamento,
Longe do Coração.

E a noite desce, desce
Como um sorriso doce,
Que em sonhos desfolhou-se
Na voz cheia de amor,
Da mãe que ensina a Prece
Ao filho pequenino,
De olhar meigo e divino
E lábio aberto em flor.

Ah! como a Noite encanta!
Parece um Santuário,
Com o lindo lampadário
De estrelas que ela tem!
Recorda-me a luz santa,
Imaculada e pura,
Da grande noite escura
Do olhar de minha mãe!

Ó noite embalsamada
De castas ambrósias…
No mar das harmonias
Meu ser deixa boiar.
Afasta, ó noite amada,
A dúvida e o receio,
Embala-me no seio
E deixa-me sonhar!

Ao clarão da Lua (Auta de Souza)

O LÍRIO

Lá nas alturas, modesta e loura,
– Do Céu imenso na face nua –
A lua branca todo o Azul doura…

A NUVEM

Ah! se eu pudesse mudar-me em lua:

O PERFUME

E aquela estrela, tão pequenina
Que mal a gente consegue vê-la,
Como cintila, casta e divina!

A LUA

Ah! quem me dera ser uma estrela!

A NUVEM

O lírio branco, cheio de orvalho,
Invoca a lua no seu martírio
E doce e triste treme no galho…

A ESTRELA

Ah! quem me dera ser como o lírio!

O CÉU

Perfume doce bóia nos ares…
Virá nas asas de um vaga-lume?
Será da terra? Será dos mares?

O ORVALHO

Ah! quem me dera ser o perfume!

O POETA

Terno instrumento suspira ao longe
Numa cadência melodiosa…
Será na cela piedoso monge?

UMA CRIANÇA (sonhando)

Ah! quem me dera ser uma rosa!

A NOITE

O sonho vive dentro em meu seio,
Garrulo e meigo, doce e risonho,
Cheio de luzes, de aurora cheio…

O PERFUME

Ah! quem me dera ser como o Sonho!

A MADRUGADA (ao longe)

Ouvem? As aves já vêm cantando,
As estrelinhas tomam seu véu…
É tempo de irmos também chegando…

O CORAÇÃO

Ah! quem me dera subir ao Céu!

Bohemias

(A Rosa Monteiro)

Quando me vires chorar,
Que sou infeliz não creias;
Eu choro porque no Mar
Nem sempre cantam sereias.

Choro porque, no Infinito,
As estrelas luminosas
Choram o orvalho bendito,
Que faz desabrochar as rosas.

Do lábio o consolo santo
É o riso que vem cantando…
O riso do olhar é o pranto:
Meus olhos riem chorando.

O seio branco da aurora
Derrama orvalhos a flux…
O círio que brilha chora:
A dor também fere a luz?

Teus olhos cheios de ardores
Aninham rosas nas faces…
Que seria dessas flores,
Responde, se não chorasses?

Sou moça e bem sabes que
A moça não tem martírios;
Se chora sempre, é porque
Pretende imitar os lírios.

Enquanto eu viver no mundo,
Meus olhos hão de chorar…
Ah! como é doce o profundo
Soluço eterno do Mar!

Do lábio o consolo santo
É o riso que vem cantando…
O riso do olhar é o pranto:
Meus olhos riem chorando.

Minh’Alma e o verso

Não me olhes mais assim… Eu fico triste
Quando a fitar-me o teu olhar persiste
Choroso e suplicante…
Já não possuo a crença que conforta.
Vai bater, meu amigo, a uma outra porta.
Em terra mais distante.

Cuidavas que era amor o que eu sentia
Quando meus olhos, loucos de alegria,
Sem nuvem de desgosto,
Cheios de luz e cheios de esperança,
N’uma carícia ingenuamente mansa,
Pousavam no teu rosto?

Cuidavas que era amor? Ah! se assim fosse!
Se eu conhecesse esta palavra doce,
Este queixume amado!
Talvez minh’alma mesmo a ti voasse
E n’um berço de flor ela embalasse
Um riso abençoado.

Mas, não, escuta bem: eu não te amava.
Minha alma era, como agora, escrava…
Meu sonho é tão diverso!
Tenho alguém a quem amo mais que a vida,
Deus abençoa esta paixão querida:
Eu sou noiva do Verso.

E foi assim. Num dia muito frio.
Achei meu seio de ilusões vazio
E o coração chorando…
Era o meu ideal que se ia embora,
E eu soluçava, enquanto alguém lá fora
Baixinho ia cantando:

“Eu sou o orvalho sagrado
Que dá vida e alento às flores;
Eu sou o bálsamo amado
Que sara todas as dores.

Eu sou o pequeno cofre
Que guarda os risos da Aurora;
Perto de mim ninguém sofre,
Perto de mim ninguém chora.

Todos os dias bem cedo
Eu saio a procurar lírios,
Para enfeitar em segredo
A negra cruz dos martírios.

Vem para mim, alma triste
Que soluças de agonia;
No meu seio o Amor existe,
Eu sou filho da Poesia.”

Meu coração despiu toda a amargura,
Embalado na mística doçura
Da voz que ressoava…
Presa do Amor na delirante calma,
Eu fui abrir as portas de minh’alma
Ao verso que passava…

Desde esse dia, nunca mais deixei-o;
Ele vive cantando no meu seio,
N’uma algazarra louca!
Que seria de mim se ele fugisse,
Que seria de mim se não ouvisse
A voz de sua boca!

Não posso dar-te amor, bem vês. Meus sonhos
São da Poesia os ideais risonhos,
Em lago de ouro imersos…
Não sabias dourar os meus abrolhos,
E eu procurava apenas nos teus olhos
Assunto para versos.

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