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O primeiro homem mau (Miranda July) e o poder da descoberta de si

Uma mulher na casa dos quarenta anos. Solitária, metódica, depressiva, sonhadora, que nutre um amor não correspondido pelo colega de trabalho. Assim poderia ser descrita Cheryl, a protagonista de O primeiro homem mau, romance de estreia da cineasta e performer estadunidense Miranda July, lançado em 2015 e publicado no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Caroline Chang e Christina Baum.

o primeiro homem mau

Confesso que não conhecia o trabalho de July como escritora até receber a indicação do livro para o Leia Mulheres Sorocaba. E como ele foi escolhido para o encontro de setembro deste ano, lancei-me à leitura e só posso fizer que foi como levar um soco. A referência não é à toa. Cheryl é funcionária de uma empresa fitness voltada a produzir vídeos de autodefesa para mulheres, e há muita violência nas páginas.

Mas não existe apenas violência física e provavelmente este seja o trunfo do livro da escritora estadunidense: escancarar o quanto estamos sujeitas a tantos tipos de abusos que vão modificando o nosso entendimento da realidade e de nós mesmas.

Uma vida vista e vivida pelos outros

Cheryl está marcada por tais agressões. Vamos acompanhando, no começo da história, uma mulher que aceita tudo e se enxerga apenas pelo olhar e vontade dos outros. O homem pelo qual está apaixonada, Phillip, faz brincadeirinhas de mau gosto e a atormenta para contar um segredo e, enquanto ela espera que ele vá se declarar para ela, para que juntos possam viver um amor que vem desde o tempo das cavernas, Phillip acaba confessando que está caído por uma menina de 16 anos – detalhe, ele tem mais de 60 – e espera que a amiga abençoe os dois para que possam ter relações sexuais. E tudo regado por trocas de mensagens que parecem roteiro de filme pornô. Além disso, seus chefes, o casal Carl e Suzanne, empurram a filha problemática, a jovem e atraente Clee, para a casa da funcionária e, de repente, a hóspede folgada começa a agredir a anfitriã. Como a protagonista, ficamos sem reação e sem fôlego no primeiro momento.

Mas é justamente por meio destas violências que Cheryl se encontra e se liberta: nas fantasias sexuais em que se vê no corpo de Phillip e de outros homens; nas lutas cada vez mais performáticas com Clee, na qual a jovem interpreta o homem agressor, enquanto a mulher tenta se proteger. A própria ligação entre Cheryl e Clee se revela complexa, isto é, duas mulheres que se veem como rivais, mãe e filha, amantes.

Além desse vínculo violento e erótico com as pessoas, Cheryl se conecta a bebês procurando por um em especial, Kubelko Bondy, nome imaginário de uma criança que ela de fato conheceu aos 9 anos e com quem teve um reconhecimento imediato, algo de outras vidas. Talvez um filho. Um marido. A alma gêmea. Uma relação estranha – como tudo no livro –, mas que vai se mostrando profunda e bela.

Estou constrangida de admitir que eu não sabia que era você, até agora, falei. Ele me deu o mesmo olhar de reconhecimento que vinha me dando desde que eu tinha nove anos — só que cansado, como um guerreiro que arriscou tudo para voltar para casa, semimorto diante da porta da frente. Agora era insuportável que ele precisasse ficar deitado, sem ser tocado, a não ser por agulhas e tubos. Abri as portinholas redondas e cuidadosamente segurei sua mão e seu pé. Se ele morresse, morreria para sempre; eu nunca mais veria outro Kubelko Bondy.

Está vendo, isso é o que fazemos, comecei. Existimos no tempo. É isso que é viver; você está vivendo tanto quanto qualquer outra pessoa. Dava para ver que ele estava se decidindo. Ele estava experimentando e não havia chegado a nenhuma conclusão ainda. O lugar aconchegante, escuro de onde ele viera versus esse mundo reluzente, seco e cheio de bipes.

Tente não se basear nesta sala para suas decisões, não é representativa do mundo inteiro. Em algum lugar o sol é quente numa folha macia, nuvens tomam formas, de novo, de novo, uma teia de aranha é quebrada, mas ainda funciona. E, para caso ele não gostasse muito de natureza, acrescentei: E é uma época realmente incrível em termos de tecnologia. Você provavelmente vai ter um robô, e isso vai ser a coisa mais normal do mundo.

Era como tentar convencer alguém a descer do parapeito de uma janela.

Claro, não há uma escolha ‘certa’. Se você escolher a morte, não vou ficar brava. Eu mesma já quis optar por ela algumas vezes.

Seus enormes olhos esforçaram-se para olhar para cima, na direção das atraentes luzes fluorescentes.

Sabe do quê? Esqueça o que acabei de dizer. Você já faz parte disso. Você vai comer, vai rir de coisas idiotas, vai ficar acordado a noite toda para ver como é, vai se apaixonar dolorosamente, vai ter seus próprios bebês, vai ter dúvidas e arrependimentos e aspirações e manter um segredo. Você vai envelhecer e ficar decrépito, e vai morrer, exausto de tanto viver. Só então você vai morrer. Não agora.”

Miranda July, O primeiro homem mau, p. 360-362 (versão Kindle).

As fronteiras borradas entre ficção e realidade

Então nos vemos diante desse círculo de fantasias que Cheryl alimenta para se manter viva em meio à solidão. Todos os seus desejos – o amor, a amizade o contato físico, a intimidade – estão permeados por esse caráter delirante, distante. Uma espécie de Macabéa do século XXI.

“Meus dias se tornam mais oníricos, sem arestas, sem nenhuma das dificuldades e confusões que a vida oferece. Depois de dias e dias sozinha, tudo se torna tão sedoso que eu não consigo sentir a minha própria presença, é como se eu não existisse.”

Miranda July, O primeiro homem mau, p. 44 (versão Kindle)

E como não se olhar no espelho e não se reconhecer em Cheryl? Algo tão comum, especialmente para nós, mulheres, que somos criadas e educadas para se enxergar e se encaixar no sonho dos outros, mesmo que o real seja tão duro, tão cruel, tão só. Somos ficção para desaparecermos (ou sobrevivermos) na realidade…

Ainda que o livro não se aprofunde em questões de gênero, machismo, abuso sexual, violência doméstica etc., é possível perceber o quanto a escrita de Miranda July é irônica e traz críticas em meio ao cômico, ao sarcástico e ao trágico. Interessante, por exemplo, perceber como Cheryl se empodera justamente por meios típicos do “universo masculino”, ou seja, o sexo, a luta, o gosto por um veículo com motor potente e barulhento. Uma subversão sútil, mas que ainda choca.  

Uma voz original e atual

A narrativa é crua e pode assustar os leitores mais conservadores. Miranda July não tem medo de penetrar na sexualidade e nas misérias das pessoas que habitam sua obra; também não se importa em trazer à tona outros assuntos tabus, como a maternidade real, as relações familiares longe do “tradicional”, o envelhecimento, a solidão. Não espere achar uma história convencional de amor entre parceiros, entre pais e filhos, ou até mesmo de amor próprio. Porém, não deixa de ser amor, que vem carregado de medos, vulnerabilidade, insegurança, abandono, mas também de alegrias, descobertas, esperanças. E aqui está a beleza do livro: acompanhar a trajetória de uma mulher que encontra uma voz e uma força interna e que, pela primeira vez, se vê antes de ser vista. Uma louca libertação ao som de “Kooks”, de David Bowie, e com um bebê “reencarnado” no colo. É, só lendo para entender.

Primeiro homem mau é um livro com uma narrativa maluca, engraçada, dolorida, com personagens que nos mostram o quanto podemos ser doidos, violentos, sonhadores, cruéis, decentes. Uma experiência de leitura que recomendo para quem não tem medo de encarar os novos nomes da literatura contemporânea e, claro, os dramas e aventuras da vida.

E quem é Miranda July?

É cineasta, performer e escritora. Seu filme Eu, você e todos nós foi premiado no Festival de Cannes. Seu segundo longa-metragem, O futuro, foi lançado nos Estados Unidos em 2011. Colabora para publicações como The Paris Review e The New Yorker. Escreveu É claro que você sabe do que estou falando, lançado pela Editora Agir em 2008, com o qual ganhou o prêmio internacional de contos Frank O’Connor; e O Escolhido foi você, também publicado pela Companhia das Letras em 2013.

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