Em um ano no qual a morte se fez tão presente devido à Covid-19, sem dúvida todos nós pensamos sobre ela. Infelizmente, já marcamos mais de 1,5 milhão de óbitos mundialmente. Fora esse número, há falecimentos por outras causas.
No Brasil, um tempo atrás fomos chocados pela banalização da morte. Provavelmente, você viu o caso do morador de rua, que faleceu dentro de uma padaria, tendo o corpo coberto e ignorado. Muitas pessoas continuam se colocando contra as recomendações científicas da Organização Mundial da Saúde (OMS) e aquela horrenda curva de contágio, que sequer diminuiu por aqui, continua a subir. Acho que tudo isso me trouxe a essas linhas, para refletir com você sobre a morte a partir do clássico A morte de Ivan Ilitch, de Liev Tolstoi.
O perigo da banalização da morte
Já antecipo que o que vou defender nesse texto não é ignorar a morte, muito menos banalizá-la, como, infelizmente, temos vislumbrado. Isso é perigoso! Aliás, em uma discussão preciosa do Cafeína Literária acerca da obra Sobre os ossos dos mortos, de Olga Tokarczuk, descobrimos que não sabemos o porquê chegamos a essa banalização. Nas palavras da autora:
Serei prolixo: “o que diabo acontece com a gente?”. Não faço ideia… Mas, com certeza, a banalização da morte nos leva à desumanização, à frieza e à crueldade.
Dito isso, voltemos ao russo. Não é spoiler, porque já está anunciado no título, como nas primeiras páginas do romance, que o protagonista morre. Ivan Ilitch era um advogado importante, construiu uma carreira em moldes de favores – sem muita diferença do que observamos em várias ocasiões corporativas de nossos dias – e tinha uma família nos moldes convencionais. Aliás, quando ele morreu, os companheiros de trabalho ficaram mais interessados no cargo de juiz à disposição e não no “amigo” que tinha partido. O casamento também não era dos melhores, ainda que depois de alguns momentos difíceis tenha conquistado a casa e o emprego dos sonhos, sua mulher, Prascóvia Fiódorovna, falava sobre o gênio difícil do marido e não sem razão.
Ao descobrir uma enfermidade, Ilitch foi ao médico e “[…] tudo se passou como esperava, isto é, como sempre acontece nessas ocasiões: a espera, um ar importante e artificial, doutoral, que já conhecia, aquele mesmo que ele sabia que tinha no tribunal, as batidas no paciente, a auscultação, as perguntas que exigiam respostas formuladas de antemão e, ao que parece, desnecessárias, a expressão significativa, que sugeria o seguinte: basta que você se submeta a nós, e havemos de arranjar tudo, sabemos sem nenhuma dúvida como arranjá-lo, temos um padrão único para todas as pessoas.”. Todavia, eles não sabiam, aliás quem sabe mesmo o que fazer nesses momentos difíceis?
Nossa relação com a vida e a morte
Ilitch percebeu que estava morrendo e, evidentemente, o desespero tomou conta dele. Embora isso dominasse sua alma, ele não conseguia saber o motivo. No fundo, ninguém sabe ao certo a resposta, até existem muitas hipóteses, como vimos no trecho supracitado de Tokarczuk, mas não passa, de suposições. Porém, não é sobre isso que vou me deter. Aqui interessa especificamente a relação do personagem com a morte e a conclusão que tirei disso, anunciada no título desse texto.
Desde quando descobrira sobre esse fato, a vida daquele homem esteve dividida em dois pontos: o desespero de uma morte sem razão e incompreendida; e os espasmos de vida que percorriam seu corpo. Quanto mais o tempo passava, menos havia interesse pela vida e mais entregue ele se tornava. Assim,
A inevitabilidade da morte é certa. Contudo, isso não pode ser o carro chefe da vida, porque se assim o for, seremos como esse homem, abriremos mão de viver e nos entregaremos à morte. Não concordo com Ilitch que era impossível resistir; acredito que essa impossibilidade se deu em virtude do posicionamento que ele adquiriu em relação à vida. Daí vem minha ideia de que não podemos resumir a vida à morte, porque ela retira a essência da nossa existência. Se de um lado não devemos banalizar a morte, por outro, não podemos resumir tudo a ela, antes como cantam os Titãs: “é preciso saber viver”.
Desse modo, viver é morrer, mas não só! É como Severino, um homem sofrido do Nordeste, que percebe que a morte é a maior empregada do sertão e que só é possível vencê-la pela persistência da vida.