Quando iniciei a leitura do livro Olhos d’água (Conceição Evaristo) tive a sensação de que aqueles contos já me eram conhecidos, pois a autora consegue trazer para a literatura pequenos lampejos de uma vida cotidiana. Não digo que os conheço por fazer parte das mulheres que tanto sofreram em seus contos, mas, o olhar que a autora põe nessas histórias, pode ser também o olhar de uma pessoa que se permite exercer empatia por diversas histórias, independente da realidade dessas histórias. Portanto, em apenas um conto é possível ter certeza que se está lendo um registro muito importante para a literatura, para o mundo atual, para a cultura afro-brasileira, para homens, mulheres e crianças periféricas.

    O primeiro conto, que dá nome ao título, é sobre uma singela, mas profunda indagação da narradora: de que cor eram os olhos de minha mãe? E a partir dessa pequena aventura, de deslocar-se para uma busca íntima e pessoal, o texto revela os detalhes de uma vida que, entre realizações, sorrisos, força e coragem, havia também muita tristeza e luta. Assim, o leitor é arrebatado para o universo tão humano de Conceição Evaristo e, por mais doloroso que seja, é impossível querer sair de lá.

    “A mãe, então, espichava o braço, que ia até o céu, colhia aquela nuvem, repartia em pedacinhos e enfiava rápido na boca de cada um de nós. Tudo tinha de ser muito rápido, antes que a nuvem derretesse e com ela os nossos sonhos se esvaecessem também. Mas de que cor eram os olhos de minha mãe? (Conto: Olhos d’água, p. 17)

    É uma ferida; que sangra; que se abre cada vez mais na mesma medida que o leitor – em seu meio confortável e privilegiado – transcorre página a página, em busca dessas histórias que também podem contar outras dores do mundo.

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    Olho d’água é sobre pessoas silenciadas

    Conceição Evaristo dá voz às pessoas silenciadas por diversas maneiras. Há aquela mulher que casou com um bandido, outra que foi apenas uma criança sonhadora e depois prostituta e depois mendiga. Em outro momento, a autora nos coloca de frente às violências cotidianas, fruto do ódio racial ou misógino. Assim, as narrativas que a autora constrói, muitas vezes, se misturam, ficando difícil separar um conto do outro, o que torna tudo muito mais condensado.

    Se por um lado, em uma história, o leitor esbarra na vida de uma mulher tão diferente; por outro, a cada conto lido, é uma única voz que vai ganhando força, como aquele inspirar profundo antes do grito, que aproxima em camadas de dor, sofrimento e coragem a vida dessas pessoas.

    Por onde amarramos nossas esperanças

    Duzu-Querença, o terceiro conto do livro Olhos d’água, é sobre uma mulher que mora na rua e, rapidamente, o seu passado é revelado. Ao longo de sua história, breves personagens aparecem, mas é na filha dessa mulher que podemos nos amarrar em algum tipo de esperança, que vem com um pensamento sobre a vida de todas as pessoas, sobre o que cada um considera, em seu ciclo tão particular, um motivo para pensar em uma possível retidão.

    O final me lembrou o poema “Apontamento“, de Fernando Pessoa: “sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.” As palavras de Conceição Evaristo são: “Raios de luz agrediam o asfalto. Mistérios coloridos, cacos de vidro – lixo talvez – brilhavam no chão“.

    Em outros contos, finais virtuosos e poéticos, apesar da dor, não aparecem, como o caso do conto “Maria”, que revela a cruel violência que acontece todos os dias nas ruas da cidade. Uma mulher negra, ao pegar o ônibus, reencontra uma parte importante de seu passado e, por isso, apenas por isso, é atingida por uma violência tão estúpida e, infelizmente, tão corriqueira em nossos dias.

    “O coração de Luamanda coçou e palpitou, embora a cara da lua nem tivesse escancarada no céu. Não fazia mal, a lua viria depois. E veio, várias vezes. Lua cúmplice das barrigas-luas de Luamanda. Vinha para demarcar o tempo grávido da mulher e expulsar, em lágrimas amnióticas e sangue, os filhos: cinco. Navegação íntima de seu homem no buraco-céu aberto de seu corpo. O amor é um poço misterioso onde se acumulam águas-lágrimas?” (Conto: Luamanda, p. 61)

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    Olhos d´água e outros espaços

    Há espaço para o amor, afinal, mesmo no silêncio, homens e mulheres podem amar de inúmeras formas; mesmo com toda a carga do mundo acusando-os apenas por serem quem são.

    Há também espaço para a morte, há, principalmente, o limite entre a vida e a morte.

    Conceição Evaristo. Foto: divulgação

    E quando resta a vida, é nessa tênue linha que mora os sofrimentos mais íntimos das personagens de Conceição Evaristo, que talvez, o leitor perceba também nas entrelinhas do texto. Se uma mulher mata, se uma mulher chora, se uma mulher aborta, se uma mulher é abandonada, se um homem ama outro homem, se uma mulher ama outra mulher, o que sentimos e para onde vamos?

    Por fim, o lugar que Conceição Evaristo ocupa em nossa literatura vai muito além das construções narrativas e personagens que envolvem o leitor em poucos parágrafos. A escritora que nasceu em uma favela de Belo Horizonte e foi empregada doméstica antes de realizar os seus estudos literários (formou-se em Letras, fez Mestrado em Literatura Brasileira e Doutorado em Literatura Comparada), registra a vida de resistência das mulheres negras, principalmente, e uma história essencial para compreender o Brasil, os seus preconceitos e violências.

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