Prestígio, reconhecimento, adulações e fortuna às vezes são consequências tão efêmeras do sucesso que o sujeito pode não compreender mais sua vida e, muito pior, não se compreender. Assim é Fio Régale, personagem central do romance “A Libélula dos Seus Oito Anos” (176 páginas, Editora Rocco, tradução de Bernardo Ajzenberg), do francês Martin Page. Neste segundo livro do autor, originalmente publicado em 2003 na França, a história se define sobretudo por sua construção e por um ininterrupto uso de figuras de linguagem, principalmente metáforas, comparações e ironias, além de, é claro, por sua inventividade poética mesclada ao humor negro.
Martin Page, um escritor francês que gosta de chá e tem o sobrenome Página: nada mais pleonástico. Impossível, então, fugir das figuras na criação literária. Em “A Libélula dos Seus Oito Anos” somos apresentados a Fio, moça com pouco mais de 20 anos que vira celebridade por acaso. É uma dessas personagens trágicas e um pouco perdidas, com um passado obscuro de pais bandidos, morando num prédio ocupado por uma única mulher que odeia tudo e todos. Vive de um plano fantástico e original: manda cartas anônimas para pessoas de negócios, importantes e desconhecidas, afirmando que tem conhecimento de seus segredos e que por isso pede dinheiro para continuar em silêncio. O dinheiro é sempre colocado no mesmo lugar, um cantinho de um penhasco, e para disfarçar a espera, Fio instala um cavalete num dos terraços que dão para o parque em frente ao penhasco e pinta seus personagens cheios de culpa. Então somos apresentados a Ambrose Abercombrie, famoso crítico de arte que descobre Fio após cair em sua armadilha, tornando-se responsável pela compra dos quadros e, mesmo depois de morto, pela ascensão de sua estrela desconhecida. Logo, o mundo das artes é invadido pelo burburinho de um novo talento cujas telas ninguém viu, e Fio não só adentra, sem vontade, este perigoso e competitivo universo de exposições e status, como passa a ser admirada por uma maioria que não conhece e não vê por que conhecer.
O mais brilhante na obra de Martin Page
O mais brilhante do romance de Page está na discussão de uma arte artificial, que a todos deixa estúpidos, revelando grupos de forçados intelectualóides e artistas excêntricos que mais prezam por frases anódinas que borbulham como suas taças de champanhe do que por valores artísticos. Fio não combina com este mundo, continua sendo a moça inteligente e tímida cujos pensamentos são “garrafas de bebida alcoólica com as quais procurava se inebriar”. Embora apoiada por partes egocêntricas, porém vivas, não deixa de sentir o desconforto da fama repentina, e busca nas xícaras de chá, nos crepes vendidos na esquina, nas Noites Tóxicas com a amiga e na decadência do prédio sua real natureza.
A história tem muito de realismo fantástico e se constrói numa atmosfera deprimente, da qual leitor e personagens não escapam. O que talvez possa parecer um desvio narrativo perto do fim, ou um clichê, foi na verdade a forma encontrada pelo autor de dar uma resposta aos temores de Fio, mas também de simplificar um problema que começava a apodrecer. Mamé, sua falecida avó, permanece presente através de um bonito ensinamento dos tempos da infância: “É preciso encontrar uma forma em função da qual se possa viver. Pode ser uma canção, uma imagem fluida, a música do sorveteiro, uma lembrança, um perfume, mas é preciso encontrar essa forma”. Fio encontra a sua: uma libélula. Resta saber se isso torna a vida mais suportável.
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Uma resposta
Martin Page é único.