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Anne Frank – A história do diário que comoveu o mundo (Francine Prose)

Resenha do livro Anne Frank – A história do diário que comoveu o mundo, lançamento da Editora Zahar, por Alex Sens.

Em junho de 1942 uma menina alemã ganhou em seu décimo terceiro aniversário um caderno axadrezado branco e vermelho. Dele fez seu primeiro e único diário, mais tarde reiniciado em outros dois cadernos de exercícios; em 1944 foi reescrito e revisado em mais 324 folhas avulsas de papel colorido, quando, já com quinze anos, esta menina veio a ser presa, deportada e morta num campo de concentração em Bergen-Belsen. Três anos depois este diário foi publicado como uma narrativa do Holocausto.

O diário, a princípio um feliz presente para alguém que desejava dar vazão às suas proclividades literárias, tornou-se um dos livros mais vendidos no mundo, um emblema da história moderna e um testemunho ocular de uma época de terror. Nada disso por acaso, afinal foram o desejoso ardoroso e a paixão criativa desta menina chamada Anne Frank, de ser reconhecida como uma escritora e de querer até mesmo sobreviver de alguma forma à morte, que a fizeram transformar um simples relato de seu trancafiado cotidiano em um romance histórico intitulado de “O Anexo Secreto”. Em “Anne Frank – A História do Diário que Comoveu o Mundo” (292 páginas, Editora Zahar, tradução de Maria Luiza X. de A. Borges), Francine Prose, uma das maiores críticas, ensaístas e ficcionistas americanas atuais, ex-professora em grandes universidades como Harvard e Columbia, fez um laborioso estudo sobre o famoso diário, mergulhando profundamente na vida de Anne e analisando seu registro não apenas como histórico, mas também artístico, encarando-o como verdadeira obra de arte.

Prose, além de fazer o leitor conviver com Anne Frank em seus últimos anos, mostra como a menina de temperamento difícil e humor instável sofria em seu processo criativo, escrevendo fervorosamente semanas antes de ser presa com outros sete judeus, criando rascunhos e editando continuamente seu trabalho literário; como ela se transformou de criança em adolescente e em escritora decidida pelo jornalismo; como sua letra sofreu mudanças enquanto esteve reclusa no anexo secreto do número 263 da Prisengracht, Amsterdam, por 25 meses; além de, é claro, como e porque o diário foi e ainda é tão superestimado, sendo publicado em todos os continentes, adaptado de forma discutível para o teatro e para o cinema, estudado em escolas, destrinchado por admiradores e ferozmente criticado por quem vê em Anne uma garota banal eternizada tão somente por sua trágica morte.

Anne Frank

O livro, a vida e a sobrevida

O subtítulo original, “The Book, the Life, the Afterlife”, ou “O Livro, a Vida, a Sobrevida”, refere-se ao irretocável e bem estruturado esquema de organização que Francine Prose fez no livro, dividindo-o nestas três partes e numa quarta intitulada “Anne Frank nas escolas”. Foi por meio desta divisão que a autora produziu uma espécie de biografia crítica da vida de Anne, colocando-a como narradora de seu presente e causadora indireta de um futuro do qual não fez parte, mas que pulsa o peso de seu nome, de sua obra e história, após mais de meio século.

Leia mais sobre Anne Frank aqui

“A vida”, parte que abre o ensaio biográfico, recupera muito das lembranças e das informações que grande parte dos leitores do diário tem da família Frank e dos que com ela dividiram o anexo. Prose começa a pequena — embora rica — biografia mostrando a necessidade que Anne tinha de um diário bem-feito para o caso, consciente ou inconsciente, de alguém o ler. Ela aponta que um dos maiores problemas que os escritores enfrentam é a questão dos antecedentes, ou seja, o quanto é preciso contar para que o leitor compreenda o que está sendo transmitido. Essa necessidade de fazer um resumo da própria vida e da vida de sua família num diário pessoal revela a veia literária de Anne, colocando seu caderno axadrezado de capa dura num outro patamar que nada tem de pessoal ou privado, mas de romanesco, criativo e genial; revela a vontade de uma aspirante à escritora de ser lida, embora negasse a princípio, uma vez que o primeiro passo da adolescência é comumente o passo do orgulho. Excetuando o próprio resumo de Anne no diário, temos mais informações da vida dos Frank, desde sua mudança de Frankfurt para Amsterdam, na Holanda, em 1933, quando as tropas de assalto nazistas começaram a boicotar o comércio judaico, até sua deportação de Westerbork para a morte em Bergen-Belsen. Com o estabelecimento de uma filial que fornecia pectina, a Opekta, os Frank foram mudando aos poucos: primeiro Otto, pai de Anne, depois sua mulher Edith, em seguida Margot, irmã mais velha, e finalmente, em 1934, a própria Anne se juntou à família em sua casa na Merwedeplein 37, endereço anterior ao anexo. Prose passa pela infância de uma Anne rabugenta, temperamental, ora sociável, ora tímida, que desencaixava o cotovelo para chamar a atenção dos amigos, que aprendeu a nova língua muito mais rápido do que a mãe (com quem tinha uma tensa relação), e que aos poucos foi criando seu caráter de liderança, decisivo, até mudar-se, em 1942, quase dois anos após a invasão da Alemanha, para o anexo secreto onde então estava instalada a Opekta, e de onde escreveria sua última versão do diário nos poucos meses de vida que lhe restavam.

Dividida em três subpartes, a segunda parte intitulada “O livro” mostra ao leitor o olhar atento de Francine como crítica literária. Aqui temos o diário destrinchado em sua versão “a”, os primeiros rascunhos com algumas entradas em formato epistolar para amigas — algumas reais, outras imaginárias —, sempre numa espécie de conversa com Kitty, o fantasma da comunicação, para a qual Anne se volta como se fosse uma leitora vivendo dentro do diário. Também a versão “b”, fruto do desejo e de uma oportunidade de Anne de transformar o diário num registro histórico publicado, quando em março de 1944, ela e os outros moradores do anexo ouviram o discurso radiofônico de Gerrit Bolkestein, ministro da Educação, Arte e Ciência do governo holandês (no exílio), reivindicar o estabelecimento de um arquivo nacional para proteger os “documentos comuns” escritos por cidadãos holandeses durante a guerra, como diários, cartas e sermões. Inspirada pelas palavras do ministro de que aqueles documentos “ajudariam gerações futuras a compreender o que o povo da Holanda havia sofrido e superado”, Anne Frank se debruçou na nova versão do diário, melhorando o estilo literário da narrativa, acrescentando fatos, dramatizando outros, excluindo outros mais. Finalmente Prose acrescenta outra comparação citando a versão “c”, ou seja, aquela versão do diário criada por Otto Frank para futura publicação, em que ele suprimiu o que pudesse afetar a imagem da filha, assim como a de sua própria e de seu casamento, que sob os olhos de Anne era frio e não tinha qualquer romance. Otto também cortou partes em que Anne se mostra mais ácida e má, quando critica os vizinhos ou sente vontade de esbofetear a mãe, assim como aquelas em que se revela curiosa sobre o sexo, o próprio corpo e em especial sobre a genitália feminina, descrevendo-a como um “buraquinho tão pequeno que mal consigo imaginar como a coisa de um homem poderia entrar ali, e muito menos como um bebê pode sair”. Francine não fica somente nas versões, mas compara (como faz a edição crítica do diário), desde a primeira até a definitiva, lançada somente em 1995 com cinco páginas a mais, o quanto de preocupação estilística havia no projeto de Anne. Seus “personagens” ganharam melhor forma, diálogos mais refinados, os cenários bem detalhados levam o leitor ao anexo, e toda dramatização, suspense ou intriga enriquece o caráter literário do diário. Além das comparações e da observação do amadurecimento de Anne como escritora, a autora passa outra vez para a história dos cadernos e das folhas, guardados por mais de um ano antes de serem lidos por Otto, quando sua criadora já estava morta.

Antes da quarta parte, “Anne Frank nas escolas”, um rápido olhar sobre o diário ensinado em algumas instituições, proibido em outras, contextualizando seu sentido histórico, o antissemitismo, discutindo genocídios e a condição humana daquela época, “A sobrevida”, terceira parte do livro, é a mais curiosa. Nela, Francine discorre sobre o problemático, emblemático, melodramático e célebre momento de Anne pós-morte, desde a casa em que ficou escondida transformada num museu visitado por milhões de pessoas até hoje, passando pela produção do diário na Broadway, cujas alterações no roteiro foram tantas e tão amargas quanto as pessoas nele envolvidas, algumas chegando à loucura, até a adaptação cinematográfica dirigida por George Stevens, indicada a oito Oscar. Em seguida surgem as muitas teorias que negam tanto a originalidade do diário, analisado por especialistas forenses em caligrafia e que mais tarde provaram ser verdadeiro, quanto as que negam a existência do próprio Holocausto.

Mais do que uma biografia crítica da obra e da pós-vida de uma menina que escreveu um diário inspirando muitos jovens, “Anne Frank — A História do Diário que Comoveu o Mundo” é o exemplo estudado e muito bem analisado de uma escritora sobre outra, de que o passado continua presente através da linguagem e da criação artística documental; uma brilhante peça que também pode ser tanto luz nas sombras deixadas por quem leu o diário, como faísca para quem não o leu e deseja descobrir, a título de curiosidade, interesse ou conhecimento, o calor que dela se desprende.

Onde Comprar Anne Frank – o diário que comoveu o mundo: Amazon

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Respostas de 2

  1. Nossa, tenho encontrado inúmeras coincidências neste blog com minhas leituras. 2666, Ulysses e agora, O diário de Anne Frank, o qual estou lendo de maneira não muito convencional.
    Recentemente descobri um site onde se pode escolher um livro constante no catálogo do mesmo. Os trechos do livro escolhido são enviados por e-mail nos dias que o próprio leitor escolhe. Optei por “testar” a ideia do site com O Diário de Anne Frank.
    Também fiquei bastante curioso sobre o livro de Francine Prose após ler esta postagem.
    Um abraço!

  2. Eu conheço esse site que manda trechos de um livro por e-mail. Eu recebi George Orwell por e-mail no ano passado, foi um experiência legal.

    Obrigada pela visita e comentários 😉

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