Um dos comentários mais brandos que eu vinha recebendo com frequência era de que O Festim dos Corvos era insosso, sem ação, mais lento que os anteriores, e que era o menos preferido dos cinco que já saíram.
Um aspecto que não aprecio em certos livros é quando o autor se propõe a seguir determinado modelo de história que abafa o seu mote inicial. Por exemplo: inventam um livro sobre um serial killer que é um palhaço. Daí enquanto se lê o livro, não se tem a sensação de que o matador é realmente um palhaço, mas sim um personagem que é muito parecido com a maioria de livros sobre o tema. O palhaço está simplesmente desenhado na capa e com o nome no título, mas a aura dele não se encontra no que realmente é importante, o miolo do livro. Ao ler não se sente essa aura que permeia o imaginário da maioria de que por atrás daquele sorriso vermelho pode se esconder alguns anseios sanguinolentos.
E é exatamente o contrário que George R. R. Martin faz com seus livros. Eu leio a série bem atrasado, já peguei mais spoilers que eu sonhei que pudessem existir pra apenas UMA série – e que série, hein (não, não estou cansado. Por mim o George pode fazer quantos livros ele quiser nessa mesma linha que eu mando pra dentro)! Um dos spoilers mais brandos que eu vinha recebendo com frequência era de que O Festim dos Corvos era insosso, sem ação, mais lento que os anteriores, e que era o menos preferido dos cinco que já saíram.
Entretanto, ao analisar o título após ter lido os três primeiros e já confiar no Martin – a não ser pelas mortes surpresas – eu sabia que ele faria um bom trabalho: simplesmente porque ele cumpriria o que se propôs no título, as consequências da guerra, o farto banquete de espólios por parte dos corvos. Não me preocupei que o livro fosse mais parado que os anteriores, apenas sabendo que o George iria passar um livro inteiro anelando carinhosamente cada espaço da história, por mais insignificante que fosse pra que o seu leitor pudesse mergulhar nela e realmente sentir na pele que sim, houve uma guerra e que agora o que contemplamos são os seus estragos.
O abalo causado pelas mortes da guerra
Como se não bastasse, as consequências da Guerra não apenas foram morte, mas principalmente abalaram muitos personagens VIVOS, que, certamente, sem ela, estariam completamente diferentes. Os que eram tidos como vilões mostram sua outra face, e os bonzinhos também. E como cerejinha do bolo, Martin passou o livro todo narrando a decadência de um dos meus personagens mais queridos.
Vale muito a pena ler o livro quatro. Porque ele mostra que livros de guerras são muito mais que meros placares finais, afinal George fez um excelente início e meio para a sua. Eu não ficava olhando aquela capa linda, cheia de detalhes e promessas sobre uma história e me escabelando de desgosto ao lê-la: o livro é muito profundo (em todos os sentidos) e cumpre até aquilo que você não sabia que ele tinha prometido.
Leia as outras resenhas de Guerras dos Tronos:
- As Crônicas de Gelo e Fogo – Guerra dos Tronos (George R. R. Martin)
- As Crônicas de Gelo e Fogo – A fúria dos reis (Livro II) – George R.R. Martin
- As Crônicas de Gelo e Fogo – A Tormenta de Espadas (George R. R. Martin)
- As crônicas de gelo e fogo – A Dança Dos Dragões (George R. R. Martin)
- O Cavaleiro dos Sete Reinos (George R. R. Martin)
Vou deixar um excerto que eu acho que resume o livro. Não tem spoiler algum.
PS: Não sou o Mindinho, pode ler mesmo.
—Sor? Senhora? – Podrick os interrompeu. – Um desertor é um fora da lei?
— Mais ou menos – Brienne respondeu
O Septão Meribald discordou.
— Mais menos do que mais. Há muitas espécies de fora da lei, assim como há muitas espécies de pássaros. Tanto um borrelho como uma águia marinha têm asas, mas não são a mesma coisa. Os cantores adoram cantar sobre bons homens forçados a sair da lei para combater um senhor malvado qualquer, mas a maioria dos fora da lei são mais parecidos com esse Cão de Caça voraz do que com o senhor do relâmpago. São homens maus, movidos pela ganância, amargurados pela maldade, que desprezam os deuses e só se preocupam consigo. Os desertores são mais merecedores de nossa piedade, embora possam ser igualmente perigosos. Quase todos são plebeus, gente simples que nunca tinha estado a mais de uma milha da casa onde nasceu até que algum senhor veio lavá-los para a guerra. Mal calçados e mal vestidos, partem marchando sob seus estandares, muitas vezes sem melhores armas do que uma foice, uma enxada afiada ou um martelo que eles mesmos fizeram atando uma pedra a um pedaço de madeira com tiras de pele de animal.
Irmãos marcham com irmãos, filhos com pais, amigos com amigos. Ouviram as canções e histórias, e por isso vão se embora de coração ansioso, sonhando com as maravilhas que verão, com as riquezas e as glórias que conquistarão. A guerra parece uma bela aventura, a melhor que a maioria deles alguma vez conhecerá. Então experimentam o sabor da batalha. Para alguns, essa única experiência é suficiente para quebrá-los. Outros resistem durante anos, até perderem a conta de todas as batalhas em que lutaram, mas mesmo um homem que sobreviveu a cem combates pode fugir no centésimo primeiro. Irmãos vêem os irmãos morrer, pais perdem os filhos, amigos vêem os amigos tentando manter as entranhas dentro do corpo depois de serem rasgados por um machado. Veem o senhor que os levou para aquele lugar abatido, e outro senhor qualquer grita que agora pertencem a ele. São feridos, e quando a ferida ainda está apenas meio cicatrizada, sofrem outro ferimento. Nunca há o suficiente para comer, os sapatos se desfazem devido às marchas, as roupas estão rasgadas e apodrecendo, e metade deles anda cagando nos calções por beber água ruim. Se quiser botas novas ou um manto mais quente ou talvez um meio-elmo de ferro enferrujado, têm de tirá-los de um cadáver, e não demora muito para que comecem também a roubar dos vivos, do povo em cujas terras combatem, homens muito parecidos com os que eram. Matam suas ovelhas e roubam suas galinhas, e daí é um pequeno passo até levarem também suas filhas.E um dia, olham ao redor e percebem que todos os seus amigos e familiares se foram, que estão lutando ao lado de estranhos, sob um estandarte que quase nem reconhecem. Não sabem onde estão nem como voltar para casa, e o senhor por quem combatem não sabe seus nomes, mas ali vem ele, gritando-lhes para se posicionarem, para fazerem uma fileira com as lanças, foices e enxadas afiadas, para agüentarem. E os cavaleiros caem sobre eles, homens sem rosto vestidos de aço, e o trovão de ferro de seu ataque parece encher o mundo… E o homem quebra. Vira-se e foge, ou rasteja para longe, depois por cima dos cadáveres, ou escapole na calada da noite e encontra um lugar qualquer para se esconder. Toda noção de casa está perdida a essa altura, e reais, senhores e deuses significam menos para ele do que um naco de carne estragada que lhes permita sobreviver mais um dia, ou um odre de vinho ruim que possa afogar-lhes o medo durante algumas horas. O desertor sobrevive dia a dia, de refeição em refeição, mais animal do que homem. A Senhora Brienne não erra. Em tempos como estes, o viajante deve ter atenção aos desertores, e temê-los… mas também deve ter piedade por eles.
(pags. 562-564)