A imortalidade não é romance de se chegar depressa ao final. É um romance de se viver página a página.
No romance “Rimas de vida e de morte”, Amós Oz proclama uma verdade quase insuportável: estaremos no mundo só até o dia em que morrer a última pessoa a lembrar de nós. Seja com um amigo, um filho, um amor, depois que não estivermos mais aqui, também a lembrança de que existimos morrerá.
Eu experimentei isso cedo, mergulhado em caixas de fotografias que ninguém mais sabia me dizer de quem eram. Primos esquecidos, tios de tios, amigos insuspeitos, todos rostos sorridentes em preto evanescente e branco esquecimento. Quem são eles? Já ninguém lembra. Estão mais mortos do que os mortos.
Há, porém, aqueles de quem o mundo jamais esquecerá, os imortais. Seja da música, da literatura, da política, da pintura, há homens e mulheres célebres que foram abençoados com a maldição da imortalidade.
Sobre o título
Aliás, é justamente esse o título sugestivo da obra de Milan Kundera que recentemente terminei de ler (completamente fascinado, preciso dizer): “A imortalidade”. Tudo inicia com um gesto, visto pelo narrador na piscina de um clube. Uma senhora, com cerca de 60 anos, faz um movimento sedutor ao se despedir de seu professor de natação:
“Meu coração apertou-se. Esse sorriso, esse gesto, eram de uma mulher de vinte anos! Sua mão tinha girado no ar com uma leveza encantadora. Como se, brincando, ela jogasse para seu amante um balão colorido. Esse sorriso e esse gesto eram cheios de encanto, enquanto o rosto e o corpo não o eram mais. […] Por uma certa parte de nós mesmos, vivemos todos além do tempo. Talvez só tomemos consciência de nossa idade em certos momentos excepcionais, sendo, na maior parte do tempo, uns sem-idade.”
A partir desse gesto, Kundera cria Agnès, sua personagem, perdida entre a juventude que já passou e o tempo que ainda virá. Em uma hábil narrativa, muito propícia às reflexões, o autor tece fios emaranhados que misturam presente e passado, ficção e realidade, tudo visando o efeito de um longo passeio. Sim, esse não é romance de se chegar depressa ao final. É um romance de se viver página a página. O essencial não são os acontecimentos, mas seus reflexos. Como afirma Kundera:
“Hoje em dia as pessoas vão em cima de tudo o que foi escrito para transformar em filme, em drama de televisão ou desenho animado. Já que o essencial no romance é aquilo que não pode ser dito senão por um romance, em toda adaptação só fica o que não é essencial. Quem quer que seja suficientemente louco para hoje ainda escrever romances, deve, se quiser protegê-lo com segurança, escrevê-los de maneira tal que não possam ser adaptados, em outras palavras, que não possam ser contados.”
Conversas com Hemingway
“A imortalidade” não é, realmente, um livro para ser contado. A linha narrativa, mais do que histórias pessoais, apanha gestos. Uma das partes do romance retrata, por exemplo, a obsessão de Bettina pelo famoso poeta alemão Goethe. Uma paixão descomunal motivada não pelo amor, mas pela busca da imortalidade. Os mesmos gestos perpassam as duas histórias e há, ainda, reflexões sublimes nos trechos em que Goethe, fantasticamente, conversa com Hemingway, enquanto é julgado e condenado a viver para sempre por ter escrito seus livros.
“O horror que senti foi pior do que o horror da morte. O homem pode pôr fim à sua vida; mas não pode pôr fim à sua imortalidade.”
Entre idas ao passado e voltas ao presente, a história principal, a de Agnès, ganha outros contornos: um marido que já não é amado, uma filha distante e uma irmã plena de desequilíbrios. O ponto central, se há algum, é justamente a disputa entre Agnès e sua irmã, Laura. É interessante notar como Laura quer a atenção de todos, enquanto Agnès se apaga, fugindo de qualquer glória. Mais interessante ainda é perceber que justamente a obsessão de Laura em imitar a irmã é que garantirá, ao final da história, a imortalidade indesejada de Agnès, viva para sempre em um gesto roubado.
Uma obra completa
Apesar de ser um leitor ávido, não lembro de ter me deparado com uma obra tão completa nos últimos tempos. Não só a história é magnificamente construída, como as reflexões características de Kundera ajuízam um olhar muito pleno e atual (mesmo a obra sendo de 1990). Isso sem contar a delicadeza de ligações entre os diferentes personagens.
Os planos da realidade e da ficção convergem em um só, e isso se faz de modo gracioso. No início, por exemplo, Kundera cria Agnès do nada e, ao final do livro, já é capaz de sentar-se e beber vinho com seu marido.
Eu poderia escrever por horas, sobre os personagens, suas ações e ligações, mas isso ainda seria pouco. O que Kundera escreveu em “A imortalidade” não é sobre eles, é sobre nós. Não só o “nós” universal, aquele que generaliza. Mas o nós formado pelo “eu” de cada um. Há um Vinícius Linné nesse romance. E há você também, certamente.
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